Autoras: Ana Paula Fracalanza e Mariana Gutierres Arteiro da Paz**
*A discussão neste artigo é baseada em texto publicado pelas próprias autoras: “A água como bem “comum”: um olhar para a crise hídrica na Região Metropolitana de São Paulo, Brasil”, publicado pelas autoras no WATERLAT-GOBACIT NETWORK Working PapersThematic Area Series – TA3 – Vol 5 Nº 3/ 2018 (https://waterlat.org/working-papers-series/vol5/vol-5-no-3/).
A problematização da não priorização do acesso ao consumo humano
A relação da sociedade com a água tem sido ambígua no contexto político brasileiro. Olhando para a água como um recurso e seguindo os princípios de Dublin, 1992, a Lei Federal de Recursos Hídricos no Brasil (Lei N° 9.433/1997) traz como um de seus fundamentos que “III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”.
Quando falamos de consumo humano, um dos mecanismos públicos responsáveis pela maior parte do acesso à água nos domicípios são os serviços públicos de abastecimento de água, o que nos leva para o universo do saneamento básico. O marco legal para o setor de saneamento básico (Lei Federal No 11.445/2007, atualizada pela Lei Federal No 14.026/2020) apresenta como primeiro princípio a universalização do acesso a todos os serviços de saneamento básico, do qual o abastecimento público de água faz parte.
No entanto, o que percebemos na crise hídrica, que se iniciou em 2014 e, menos ou mais intensa se manteve, é que o consumo humano não foi priorizado – como preconizado na Lei das águas no Brasil – em muitos casos (MDR, SNS, 2021; Paz e Fracalanza, 2020; Quintslr, Maiello e Britto, 2018; Britto, Formiga-Johnson e Carneiro, 2016; Soriano et al., 2016; Del-Grande et al., 2016). Além de não priorizado o consumo público de água, a prática de “diminuição da pressão” e outras nomenclaturas dadas ao rodízio de água, se tornou cada vez mais comum e, em alguns lugares, até rotineira (MDR, SNS, 2021; Paz e Fracalanza, 2020; Quintslr, Maiello e Britto, 2018; Britto, Formiga-Johnson e Carneiro, 2016; Soriano et al., 2016; Del-Grande et al., 2016). Isso vai na contramão de diretrizes como o Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab vigente (SNSA, 2013) e o “marco dos direitos humanos para a água, esgotamento sanitário e higiene” segundo as Nações Unidas – A/70/203 (ONU, 2015).
O Plansab compreende que o atendimento adequado aos serviços de saneamento básico não é simplesmente a ligação do domicílio ao sistema, mas o recebimento de serviços de qualidade (Figura 1). No caso do abastecimento público de água, é considerado atendimento precário informações como não atendimento aos padrões de qualidade da água e ocorrência de intermitência e racionamentos (SNSA, 2013). Da mesma forma, “O direito humano à água exige que os serviços estejam disponíveis, sejam seguros, aceitáveis, e física e economicamente acessíveis.” (p. 9, ONU, 2015). Ainda, o conceito de disponibilidade está relacionado ao “abastecimento confiável e contínuom” (p. 10, ONU, 2015) de forma que o acesso à água se dê nos momentos de suas necessidades de uso.
Figura 1. Conceito de déficit de saneamento adotado no Plansab
Fonte: SNSA, 2013.
Tendo em vista que os princípios e fundamentos presentes nas leis da água , do saneamento básico e do direito humano à água e ao esgotamento sanitário não estão sendo observados na realidade do acesso à água, apresentamos aqui uma reflexão sobre o olhar para a água para além de um recurso, mas como um comum, publicado* no Waterlat-Gobacit Network – Working Papers, Volume 5, Número 3, número este denominado “Politics of inequality in the urban water cycle: experiences from Argentina and Brazil”.
Água enquanto bem “comum” e mercadoria
Parte-se dos princípios de que a apropriação da água para a realização das atividades humanas promove “conflitos pelo uso da água”; alguns usos da água são excludentes, entre si; e de que a água vem passando por progressiva dotação de valor, associado pelo mercado a sua escassez. Neste sentido, a discussão que o texto propõe é:
não é somente a destinação da água para várias finalidades e para diferentes populações e usos, mas como se está apropriando da água, a transformação da qualidade e da quantidade de água após seu uso pelas várias atividades humanas, quais os fins que se busca com a apropriação dos recursos hídricos, e por quem estes recursos são apropriados. (Fracalanza e Paz, 2018, p. 58).
Essa “apropriação” na gestão da água como recurso pode excluir o acesso à água e rivalizar a água, tornando-a uma mercadoria. Quando consideramos o direito humano à água, e sua característica de essencial não só à vida humana, mas a todas as formas de vida, bem como os seus usos culturais e espirituais, entendemos que as discussões sobre a água como bem público ou comum vem nos auxiliar a resgatar e compreender a água como um elemento essencial à vida e “reservada para o uso comum, em sua destinação social” (Fracalanza e Paz, 2018, p. 58). Bakker (2010) debate a conceituação de água enquanto um bem público, no sentido de que a água não é substituível, é essencial à vida; e que sua oferta traz implicações na saúde pública coletiva. E o conceito proposto por Dardot e Laval (2014) parte de uma articulação de “bens comuns” e “democracia participativa”, pois os autores entendem que ao considerar a água como um “bem”, ainda que comum, implicaria na possibilidade de um “proprietário” Neste sentido, a água enquanto “comum” é inclusivo e acessível para atender às necessidades de todas as formas de vida e às necessidades sociais, sanitárias, culturais e espirituais de toda a sociedade.
Um convite às reflexões sobre privatização e justiça social
Esta discussão é muito relevante no contexto em que a revisão do marco legal do saneamento básico estimula a privatização das empresas que oferecem água para a população, através dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Neste caso, a apropriação da água para consumo humano, pode ficar centrada no mercado; a lógica de plena recuperação de custos inerente ao setor privado pode prejudicar tanto o tratamento de esgotos, mantendo e/ou aumentando os conflitos pelos usos da água (comprometimento da qualidade dos corpos hídricos para outros usos); e, também, pode não reduzir a exclusão social no atendimento aos serviços, pois as camadas mais vulneráveis e que mais necessitam de investimentos nos serviços de saneamento básico podem estar em localidades cujos investimentos sejam mais custosos, ou simplesmente por não ser uma parcela de “clientes” com capacidade de pagamento.
Os aspectos regulatórios e de controle social serão cada vez mais importantes e necessários, demandando um fortalecimento para que se façam cumprir as metas estabelecidas nos planos e contratos, inclusive de universalização de prestação dos serviços. Esses mecanismos regulatórios têm múltiplas funções – contribuir para se fazer valer o acesso à água e ao esgotamento sanitário para toda a população, e criando um ambiente estável para a realização de investimentos públicos e privados. No entanto, além da regulação e do controle social – atividades com foco na prestação dos serviços – há de se discutir questões que antecipam os contratos e planos de saneamento básico. Neste sentido, trazemos a discussão dos conceitos de vulnerabilidade social e injustiça ambiental em relação à distribuição da água e ao acesso aos serviços de coleta, afastamento e tratamento de esgotos; e da água como “comum”.
A injustiça ambiental, reflexo da “forma de ocupação do espaço na sociedade capitalista contemporânea perpetua a desigualdade no acesso a bens essenciais para as pessoas”. As desigualdades na apropriação da água, recurso este fundamental à vida, resultam, também, em situações de maiores riscos associados ao uso do território e são encontrados, em maior parte, em populações em situação de baixa renda, em grupos sociais discriminados, em populações socioambientalmente vulneráveis, especialmente nas metrópoles urbanas. Tais desigualdades e injustiças são exacerbadas em situações de crise hídrica, como observado nas metrópoles brasileiras (MDR, SNA, 2021) como a paulista (Paz e Fracalanza, 2020; Fracalanza e Paz, 2018; Soriano et al., 2016) e fluminense (Quintslr, Maiello e Britto, 2018; Britto, Formiga-Johnson e Carneiro, 2016).
Entendemos, portanto, que a noção da água como “comum” implica que sua distribuição em qualidade e quantidade para usos essenciais se contrapõe com as formas capitalistas de apropriação que tratam a água como uma mercadoria e como um objeto de lucro. Assim, trata-se de considerar os usos essenciais da água e a importância dos ecossistemas de forma ampla, considerando a fauna e a flora, e para abastecimento público em qualidade e quantidade para toda a população, de modo a buscar a justiça hídrica e ambiental.
Referências:
BAKKER, K. Governance failure and the world’s urban water crisis. Ithaca and London: Cornell University Press, 2010.
Britto, A.L., Formiga-Johnsson, R.M. e Carneiro, P.R.F. Abastecimento público e escassez hidrossocial na Metrópole do Rio de Janeiro. Ambiente e Sociedade. 19, 1, jan-mar, 2016. https://www.scielo.br/j/asoc/a/ZTMCTZxyDx6hTys6tJyfg7s/?lang=pt
Dardot, P.; Laval, C. Commun. Essai sur la révolution au XXIe siécle. Paris: La Découverte, 2014.
Del-Grande, M.H.; Galvão, C. de O.; Miranda, L.I.B. de; Sobrinho, L.D.G. A percepção de usuários sobre os impactos do racionamento de água em suas rotinas domiciliares. Ambiente e Sociedade. 19, 1, jan-mar, 2016. https://doi.org/10.1590/1809-4422ASOC150155R1V1912016
Fracalanza, A.P. e Paz, M.G.A. da . Water as a “common” good: a view on the water crisis of the Sao Paulo Metropolitan Region, Brazil (in Portuguese). WATERLAT-GOBACIT NETWORK. Working Papers Thematic Area Series – TA3 – Vol 5 Nº 3. DOI: 10.5072/zenodo.265519
MDR, SNS. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento – SNS.3 2021. https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/saneamento/plansab/RELATRIODEAVALIAOANUALDOPLANSAB20192.pdf
ONU. Organização das Nações Unidas. Assembleia Geral – A/70/203. Septuagésima sessão Item 73 (b) da agenda provisória. Questões de direitos humanos, incluindo abordagens alternativas para aprimorar o exercício efetivo dos direitos humanos e liberdades fundamentais. ONU: 2015. Disponível em: <https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2019/09/OITAVO-Relat%C3%B3rio-%E2%80%93-Direitos-humanos-%C3%A0-%C3%A1gua-pot%C3%A1vel-e-ao-esgotamento-sanit%C3%A1rio.pdf>. Acesso em: 12/10/21.
Paz, M.G.A. da; Fracalanza, A.P. Controle social no saneamento básico em Guarulhos (SP): o Conselho Municipal de Política Urbana. Ambiente e Sociedade. 23, 2020. https://www.scielo.br/j/asoc/a/C9LyxyrKhCLQqP4RgGLK99f/?lang=pt
Quintslr, S.; Maiello, A.; Britto, A.L. Unequal access to water and environmental inequality in the Rio de Janeiro Metropolitan Region: a case study of Queimados (in Portuguese). WATERLAT-GOBACIT NETWORK. Working Papers Thematic Area Series – TA3 – Vol 5 Nº 3. DOI: 10.5072/zenodo.265515
SNSA – SECRETARIA NACIONAL DE SANEAMENTO AMBIENTAL. Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab. Brasília: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, 2013. Disponível em: https://urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/plansab_texto_aprovado.pdf
Soriano, E.; Londe, L. de R.; Gregorio, L. T. di; et al. Crise hídrica em São Paulo sob o ponto de vista dos desastres. Ambiente e Sociedade. 19, 1, jan-mar, 2016. https://doi.org/10.1590/1809-4422ASOC150120R1V1912016
**Autoras:
– Ana Paula Fracalanza – Professora Associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Ex-Coordenadora do Programa de Pós Graduação em Ciência Ambiental e Professora do Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da USP. Participa do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade do Instituto de Estudos Avançados. Trabalha com os temas governança da água, políticas públicas ambientais e saneamento básico.
– Mariana Gutierres Arteiro da Paz – Pesquisadora de DTI A no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); Pesquisadora Colaboradora do Centro de Sínteses USP Cidades Globais (IEA/USP); e Pesquisadora Colaboradora do projeto PRIVAQUA no Centro de Pesquisa René Rachou – Fiocruz. Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (PROCAM-IEE-USP) e Mestre em Saúde Pública (FSP/USP). Gestora Ambiental pelo Centro Universitário SENAC.