Autores: Davi Victral, Ivanice Paschoalini, Laura Magalhães, Natália Onuzik
Conforme salientado no texto “A crise na privatização dos serviços de saneamento em Ouro Preto” , os imbróglios no processo de transição dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, da autarquia municipal Semae-OP (Serviço Municipal de Água e Esgoto de Ouro Preto) para o consórcio de empresas Ouro Preto Serviços de Saneamento (Saneouro), levantam inúmeros debates em meio à uma Comissão Parlamentar de Inquérito (nomeada pela Portaria nº 36/2021 da Câmara Municipal de Ouro Preto). Discussões como acessibilidade econômica às tarifas dos serviços, privatização dos serviços de saneamento, universalização e os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário entram na pauta juntamente com movimentos de resistências populares contrários ao novo cenário no saneamento do município.
Em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas através da resolução A/RES/64/292 reconheceu o direito à água potável e ao saneamento como um direito humano, e também a responsabilidade dos Estados pela promoção e proteção destes direitos (UNGA, 2010). Quando se discute a tarifação dos serviços de saneamento, estamos falando diretamente da acessibilidade econômica, atributo normativo dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES), e componente essencial para a realização desses direitos, pois refere-se à variedade de condições particulares e necessidades de uma população.
O acesso aos serviços de saneamento não deve comprometer o cumprimento de outros direitos humanos (habitação, alimentação, saúde e educação, por exemplo), sob o risco de acentuar situações de vulnerabilidade social e econômica. No caso de Ouro Preto, a prestadora de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário tem realizado simulações dos valores a serem cobrados das residências com os novos hidrômetros, sendo que relatos de moradores apontam para altos valores em locais de baixo consumo, como destacado em matéria do Jornal Estado de Minas. Moradores, acostumados a pagar uma taxa fixa pela prestação dos serviços, estão se deparando com simulações de tarifas com valores até quarenta vezes maiores do que a taxa atual. O alto valor das tarifas simuladas tem gerado descontentamento e preocupação, que são refletidos nas diversas manifestações populares contra a concessionária privada Saneouro.
É importante ressaltar que a acessibilidade econômica possui uma relação próxima com o princípio da igualdade e não-discriminação, pois a impossibilidade de pagar pelos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário pode levar à desconexão de moradias, cujos moradores já se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica, ampliada pelo atual contexto da pandemia do vírus SARS-CoV-2. Em tempos de emergência sanitária, o acesso à água segura, em quantidade suficiente e sem interrupções, é essencial para a garantia da saúde dos indivíduos, visto que a higiene das mãos e do ambiente domiciliar, ou local de trabalho, são recomendações da Organização Mundial de Saúde para o combate ao vírus SARS-CoV-2.
Uma das formas de viabilização da acessibilidade econômica aos serviços de saneamento é a implementação de medidas afirmativas focadas nas populações e indivíduos em situação de vulnerabilidade social e econômica. A tarifa social é uma destas ações que podem atenuar os impactos econômicos do pagamento de tarifas. No caso de Ouro Preto, o benefício da tarifa social, já praticado pela antiga autarquia, permaneceu, prevendo reduções de 22% nas faturas para pessoas de baixa renda. Para isso, é necessário que o beneficiário se enquadre em alguns requisitos, como o solicitante estar classificado na categoria residencial, ser inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), ter renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo, ter consumo médio de energia elétrica até 100 Kw/h e de água até 20 m³ por mês, além de não possuir débitos com a Saneouro. Está estabelecido que, após falta de pagamento por três meses, o benefício é cancelado.
Em 2020 foi publicado o relatório “Direitos humanos e a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário” pela Relatoria Especial sobre os direitos humanos à água potável e ao esgotamento sanitário da ONU. Nesse documento são listados três principais fatores de risco da privatização aos direitos humanos: a maximização do lucro, o desequilíbrio de poder e o monopólio natural que caracteriza a prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário. Estes três fatores afetam diretamente a acessibilidade econômica aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, principalmente a formação de um monopólio natural e o ideal de maximização dos lucros. Para esses dois fatores, existe o controle estatal materializado na regulação dos serviços, porém, o ente regulador deve estar presente em todas as etapas da desestatização dos serviços (ex. antes da aprovação dos documentos de licitação, assinatura de contrato, execução do contrato) visando a elaboração de um contrato simétrico e inclusivo. Em 2019, na cidade, foi criada a Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Ouro Preto (ARSEOP) com o intuito de regular os serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, transporte e iluminação pública. Porém, devido à falta de transparência, altos custos e ineficiência, a agência foi extinta em 2021. Atualmente, os serviços são regulados pela Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento Básico de Minas Gerais (ARISB-MG).
Reforçar a importância da regulação no setor de saneamento é fundamental, não apenas por se tratar de um setor marcado por monopólios naturais, mas também por esta poder se encontrar em um ponto equidistante em relação aos interesses dos cidadãos, dos prestadores de serviços e do próprio Poder Executivo. Dessa forma, é indispensável buscar o equilíbrio e a blindagem às pressões políticas e interesses de atores econômicos, sob o risco de violações aos DHAES. É importante destacar o papel regulador do Estado para monitorar as empresas privadas prestadoras dos serviços no que tange ao cumprimento dos contratos pré-estabelecidos e ao cumprimento dos princípios e conteúdos normativos dos DHAES.
A população do município de Ouro Preto-MG ainda não é contemplada de maneira universal pelos serviços de saneamento. Em um contexto de emergências sanitárias, impactos ambientais e vulnerabilidades sociais e econômicas agudas, é imprescindível lutar pela universalização dos serviços, para que sejam ofertados para todos, sem discriminação, serviços de qualidade e em quantidade necessárias, com acessibilidade econômica e participação social. Além disso, é fundamental a regulação do setor, a avaliação e o monitoramento contínuos dos serviços e a sua adequação aos DHAES. Proporcionar saneamento para todos é uma forma de promover saúde, bem-estar, equidade e justiça socioambiental.
Referências:
United Nations General Assembly (UNGA). Human Right to Water and Sanitation. Geneva: UNGA; 2010. UN Document A/RES/64/292.