30 de junho de 2021
José Irivaldo A. O. Silva[1]
Maria Luiza Pereira de Alencar M. Feitosa[2]
Aendria de Souza do Carmo Mota Soares[3]
A “nova” lei 14.026/2020 abre espaço para um modelo agressivo de inserção do capital privado no “negócio” do saneamento. Em apertada síntese, a lei (i) altera profundamente o elenco de atribuições da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA); (ii) impõe aos Estados o formato de regionalização por blocos de municípios integrados, estipulando prazos e punições em caso de não cumprimento, o que desvirtua o princípio federativo da autogestão dos Estados e dos Municípios; (iii) extingue os chamados “contratos de programa” celebrados com as companhias estaduais de água e esgotos, em regime preferencial, mantendo apenas os vigentes; (iv) elimina o subsídio cruzado, que incorporava o princípio da solidariedade entre municípios superavitários e deficitários do sistema. A lei é inteiramente permeada pela ideia ilusória de que o setor de saneamento é competitivo.
Tendo como base a nova lei, a Paraíba, que possui 223 municípios e população de 4 milhões de habitantes, lançou, em 30/04/2021, consulta pública acerca de Anteprojeto de Lei Complementar Estadual. A audiência pública, realizada em 18/05/2021 no formato virtual, contou com a presença de dois consultores contratados, responsáveis pela elaboração dos estudos e do anteprojeto de lei, além de representante da Secretaria de Infraestrutura dos Recursos Hídricos e do Meio Ambiente do Estado da Paraíba (SEIRHMA). Essa audiência teve duração aproximada de três horas e foi o primeiro e único momento em que representantes dos municípios e a sociedade tiveram a oportunidade de debater o tema, sendo porém o debate restrito à manifestação por mensagens (via chat do Youtube). A mediadora da audiência selecionou as perguntas a serem feitas verbalmente aos consultores e ao Secretário da SEIRHMA, informando que as perguntas não selecionadas seriam respondidas posteriormente por e-mail, ou seja, ficaram muitas questões, a maioria delas, que sequer foram verbalizadas e muito menos publicamente respondidas na referida “audiência”.
Em 16/06/2021, foi protocolado o Projeto de Lei Complementar (PLC) 31/2021 na Assembleia Legislativa. No mesmo dia, foi enviado à Assembleia o estudo técnico que embasou o PLC, contendo 214 páginas. O Projeto foi encaminhado no regime de urgência urgentíssima e já no dia seguinte, com seção iniciada às 10 h, este foi aprovado, com manifestação de alguns deputados exigindo o debate em tempo hábil para conhecimento da matéria, alegando a impossibilidade de analisar o texto do PLC e o estudo técnico, em função do prazo de protocolo e disponibilização. Até mesmo os que votaram favoravelmente, como o Presidente da Assembleia, admitiram não conhecer em detalhes o texto do PLC, tampouco o estudo técnico. Assim, o PLC foi protocolado e aprovado em menos de 24 horas, sem que sequer fosse possível aos deputados, aos municípios e à sociedade analisar seu texto com algum aprofundamento e, menos ainda, conhecer os motivos presentes no estudo técnico que o amparou e dividiu a Paraíba nas microrregiões de saneamento. Aprovado o projeto em 17/06/2021, este foi sancionado em 22/06/2021 e publicado em 23/06/2021, ou seja, entre o protocolo, a aprovação e a publicação transcorreram menos de cinco dias úteis.
Se o debate legislativo é imprescindível para a observância do processo democrático contido no ordenamento jurídico vigente, particularmente diante da complexidade do tema, de sua relevância e de seus impactos, o debate do PLC 31/2021, que originou a LC 168/2021, deveria ter sido exaustivo, confrontando visões favoráveis e contrárias. É importante salientar que, de forma independente e a partir do texto do anteprojeto e dos escassos documentos e informações apresentadas na Audiência Pública, o tema foi debatido pela Frente Ambientalista da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba em 10/06/2021. Do mesmo modo, em 15/06/2021, dia anterior à propositura do PLC 31/2021, o tema foi debatido na Comissão de Desenvolvimento, Turismo e Meio Ambiente da Assembleia. Ambas as iniciativas destoaram do comportamento do plenário da Assembleia, que não abriu possibilidade de debate do conteúdo do PLC 31/2021 e de seu respectivo estudo técnico, sendo verificável na seção de deliberação a declaração de diversos parlamentares no sentido de afirmarem o desconhecimento do próprio texto do PLC.
Cabe ressaltar a importância da participação da sociedade civil em processos de tomada de decisão que podem afetar o acesso da população aos serviços de saneamento. O acesso à agua e aos esgotos foram reconhecidos como direitos humanos em 2010 e, sendo a transparência e a participação social princípios basilares dos direitos humanos, é imprescindível que decisões com o alcance desta sejam pautadas em ações transparentes e que permitam a participação dos diversos grupos sociais que podem ter seu direito afetado. Assim, fica a reflexão: serão os estados capazes de garantir a transparência e participação social nos processos de tomada de decisão sobre os novos arranjos no setor de saneamento?
[1] Professor da Universidade Federal de Campina Grande, membro do PRIVAQUA.
[2] Professora da Universidade Federal da Paraíba.
[3] Advogada e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Direitos Humanos da UFPB