autor: Bruno Puga*
Nas últimas décadas, o desenvolvimento dos mercados financeiros globais tem levado a uma crescente influência destes nas economias nacionais. Esse processo, que pode ser denominado de financeirização, é caracterizado por uma maior participação e importância dos fluxos de capitais, atores e circuitos financeiros para as transações econômicas (Epstein, 2005). Alguns autores destacam o papel específico que o processo de financeirização possui sobres economias em desenvolvimento, com destaque para uma maior liberalização e desregulamentação financeira como forma de inserção subordinada aos fluxos globais de capital. Com maiores fluxos de capitais e poucas barreiras à sua mobilidade, há uma busca crescente por novas oportunidades de retorno financeiro e investimento, principalmente em mercados emergentes.
No Brasil, as commodities mais comuns negociadas no mercado futuro são açúcar, boi gordo, café, etanol, milho, minérios e soja. Entretanto, os investidores podem ter acesso a todos os ativos globais de forma simples através das corretoras de valores. A maior parte deles é negociada na Chicago Mercantile Exchange (CME), a maior bolsa de derivativos de agricultura e commodities, operando 24h por dia e 6 dias por semana, com uma negociação média diária em derivativos de agricultura de US $46 bilhões. Além de centenas de commodities, desde dezembro de 2020 iniciou-se a negociação do ativo NQH20, o primeiro contrato futuro de água no mundo. O objetivo, segundo o CME, é que esse derivativo possa ajudar a balancear a oferta e demanda em um cenário de maior variabilidade climática. Além disso, afirma que é uma maneira de “determinar o valor justo da água como commodity”, possibilitando aos compradores uma maneira de se proteger contra o risco de secas. Se o preço de um contrato futuro subir após o momento da compra, os especuladores (indivíduos, fundos de hedge ou empresas independentes) ganham dinheiro. O gráfico abaixo demonstra o comportamento do seu preço ao longo do tempo, que tem acompanhado a intensidade da escassez hídrica que assola diversas partes do globo.
Um mercado futuro geralmente possui dois tipos de agentes. O primeiro é o possuidor ou usuário do produto real que possui as commodities (soja, milho, açúcar, etc.) que vão desde os agricultores até as grandes corporações produtoras ou intermediadoras destes, que realmente precisam vender ou comprar tais produtos. Já o segundo grupo é de especuladores financeiros que transacionam qualquer tipo de ativo financeiro em busca de ganhos na diferença entre compra e venda. Em nenhum momento este segundo grupo vai precisar usufruir dos ativos que eles estão negociando. Não estão interessados em comprar toneladas de soja ou galões de água para satisfazer a necessidade de sua produção, mas apenas no ganho financeiro. Na maioria das vezes, sequer sabem qual ou quais mercadorias estão transacionando, tal é a desconexão entre o mercado e o objeto dos investimentos.
Como são instrumentos que permitem operar ativos de forma alavancada, a possibilidade de especulação pelo mercado pode aumentar os riscos de forma exponencial. A alavancagem é um mecanismo de negociação que investidores usam para aumentar sua exposição ao mercado, permitindo que paguem menos do que o valor total do investimento. O uso de alavancagem permite que um negociante assuma uma posição maior em um determinado ativo sem ter que pagar o preço total de compra.
Tal mercado só é possível em lugares onde a água é tratada como um produto, como na Califórnia (EUA), onde os direitos de uso e as outorgas são comprados e vendidos. Inicialmente, os direitos estavam relacionados à posse da terra (direitos ripários). Desde a corrida pelo ouro no século 19, a lógica dos direitos foi acrescida do conceito de “first in time, first in right“, ou seja, a propriedade dos direitos de uso têm preferência para os pioneiros ou quem capturar primeiro (também conhecido como direitos de apropriação). Em 2012, a Califórnia foi o primeiro estado americano a reconhecer o direito humano à água, com prioridade para o uso doméstico e pessoal e introduziu mecanismos inéditos para garantir o acesso universal à água. Entretanto, o reconhecimento da água como direito não vem impedindo, infelizmente, que ela seja tratada e comercializada como um produto, em contradição com o Comentário Geral no. 15, reforçando que “a água deve ser tratada como um bem social e cultural, e não primariamente como um bem econômico” [1].
Essa nova tentativa de enquadrar e negociar a água como produto é um passo arriscado, que pode se contrapor com o reconhecimento crescente pelos países do direito humano à água e seus diferentes valores sociais, culturais e espirituais. Na verdade, é possível reconhecer os direitos e ter a negociação. Ademais, é bom lembrar que muitas vezes essa especulação diz respeito aos recursos hídricos em geral, e não à água para consumo humano. Este processo histórico de comodificação da água está em linha com um processo maior de um ambientalismo de mercado e na crença de que tal mecanismo é capaz de solucionar os problemas relativos à importância da água. Os princípios de Dublin, promulgados na década de 1990, capturam a essência desta abordagem ao reconhecer que a água possui valor econômico em seus usos competitivos e deveria, portanto, ser reconhecida como um bem econômico. Na ocasião, os proponentes da noção de tratar água como um produto vislumbravam que seria uma maneira mais eficaz de garantir o melhor uso da água em casos de escassez.
Mais recentemente, os defensores da inclusão da água como produto nos mercados futuros são uníssonos na defesa do mecanismo de alocação de preços como forma de alocação mais eficiente dos recursos escassos. Entretanto, até mesmo expoentes do mercado financeiro apontam para uma série de problemas que a água como produto pode enfrentar [2]. Na ocasião do lançamento deste novo mercado futuro, o Relator Especial da ONU expressou profundas preocupações, afirmando que “poderia atrair a especulação de financistas que o negociariam como outras commodities, como ouro e petróleo”. Ademais, reforçou que não se pode colocar um preço em um bem público vital como se fosse um mero produto. A aposta nesse mercado é arriscada, uma vez que pode exacerbar ainda mais as diferenças financeiras e de poder que grandes empresas e operadores podem ter sobre pequenos agricultores e outros operadores.
Especialistas do mercado financeiro apontam que a única “vantagem” para uma transação deste tipo deveria ser uma certa medida de estabilidade e previsibilidade de preços, mas reconhecem que tal mecanismo não aborda as causas subjacentes da escassez de água [3]. Dado que a Califórnia tem um longo histórico de secas e problemas com conflitos entre os usos múltiplos da água, isso poderia causar ainda mais turbulências em um cenário de intensificação dos eventos climáticos extremos. A solução propagandeada pelos arautos do mercado financeiro pode não apenas não resolver os problemas, mas talvez criar problemas adicionais. Mas talvez o objetivo seja somente o mesmo de sempre: a busca pelo lucro.
*Autor:
– Bruno Puga – Pesquisador pós-doutorado no Instituto Rene Rachou / Fiocruz. Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010), mestrado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (2014) e doutorado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (2018).