7 de julho de 2021
Bruno Peregrina Puga e José Irivaldo Alves Oliveira Silva
As décadas de 1980 e 1990 testemunharam um aumento na privatização generalizada de ativos estatais, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento. Isso se deveu a uma série de fatores que intensificaram a política de privatizações nesses países. Nesse contexto, o setor de água e saneamento também passou por grandes transformações. Mais recentemente, houve um crescente histórico de insucesso ao redor do mundo quanto à participação privada na provisão destes serviços essenciais e que pode ser creditado tanto à superestimação dos benefícios quanto à subestimação dos riscos e custos envolvidos. Para além dessa dimensão, chama atenção a perspectiva dos direitos humanos, uma vez que há uma série de dúvidas quanto à suposta eficiência das empresas privadas para a realização plena desses direitos.
Sendo assim, um dos objetivos do Projeto Privaqua é mapear as evidências dos possíveis impactos dos processos de privatização sobre os direitos humanos à água e saneamento. Para tanto, é preciso primeiramente debruçar-se sobre a forma como tais processos são estabelecidos ao redor do mundo. Muito embora seja frequentemente utilizado de forma genérica, o termo privatização pode envolver diferentes formas de arranjos para a participação privada. As experiências privatizantes nas décadas passadas foram em sua maioria realizadas através de concessão, com alguns casos de venda plena de ativos. Entretanto, as novas formas de participação privada têm se diversificado, através de modalidades distintas de participação do capital privado nos serviços. Entre os tipos “puros” de provisão (totalmente pública e totalmente privada) temos diferentes modelos e configurações possíveis, a depender tanto do arcabouço legal e institucional, quanto da natureza da operação e do tipo de contrato envolvido, como ilustrado na Figura 1.
Figura 1: Diferentes tipos de provisão de água e saneamento
O uso de um conceito mais amplo de privatização, e não apenas seu caso mais extremo de venda total de ativos, é mais adequado para entender as diferentes formas de envolvimento do setor privado na prestação do serviço. Logo, o conceito de privatização tem sido empregado ao aumento da participação privada no setor de água e saneamento, e não necessariamente quando resulta em transferência de ativos. Dentre estas possibilidades, a parceria público-privada é um termo comumente utilizado, mas nem sempre muito bem definido.
Nos arranjos de privatização, entes privados geralmente assumem os serviços através de contratos de serviço e gestão, concessão, arrendamento e outros formatos, como descrito no Quadro abaixo.
Contrato de serviço | Contrato de gestão | Arrendamento / affermage | Concessão | BOT | Desestatização | |
Propriedade do ativo | Público | Público | Público | Público | Privado / público | Privado |
Investimento do capital | Público | Público | Público | Privado | Privado | Privado |
Risco comercial | Público | Público | Compartilhado | Privado | Privado | Privado |
Operações / manutenção | Privado / público | Privado | Privado | Privado | Privado | Privado |
Duração do contrato | 1-2 anos | 3-5 anos | 8-15 anos | 25-30 anos | 20-30 anos | Indefinido |
Fonte: Budds (2003).
Os contratos de serviço geralmente são de curto prazo e envolvem arranjos de terceirização de alguns tipos de tarefas e ações específicas, como manutenção, instalação de medidores, cobrança e serviços financeiros. Já nos contratos de gestão algumas responsabilidades são cedidas em um período maior para a iniciativa privada (como operação ou manutenção), mas o poder público ainda se mantém responsável pelo investimento e expansão, remunerando as empresas através de pagamentos por serviços (de forma fixa ou por performance).
Nos contratos de arrendamento ou affermage, a operação e manutenção ficam a cargo do operador privado, que recebe os valores arrecadados dos usuários e paga uma taxa para determinada quantidade de água produzida, além de uma taxa aos governos (como aluguel).
Nos modelos de concessão, predominante no Brasil, a expansão e manutenção dos sistemas ficam a cargo das empresas privadas. Geralmente são contratos de longa duração e os ativos se mantêm de propriedade pública.
De forma análoga, nos contratos tipo BOT (Build – Own – Transfer ou Construir – Possuir – Transferir) as empresas privadas ficam com a responsabilidade da construção do sistema ou de parte dele (como estações de tratamento de água ou esgoto) e sua posterior transferência para o setor público.
Já nos casos mais extremos de desinvestimento ou desestatização, todos os ativos são transferidos para a iniciativa privada. Este modelo foi utilizado em poucos casos, como no Reino Unido e no Chile.
Um importante fenômeno mais recente na inserção do capital privado no saneamento tem sido conhecido como financeirização do setor, resultado do crescente interesse do mercado financeiro, principalmente através de fundos de pensão internacionais, sobre as companhias de saneamento. A lógica adotada tem sido a de que os empreendimentos possuem um retorno praticamente garantido em médio e longo prazo, principalmente pela essencialidade dos serviços de água e esgotos. Portanto, atualmente pode-se dizer que a privatização dos serviços de água e esgoto passa por um processo de financeirização, com impacto direto na realização dos direitos humanos de acesso à água e ao esgotamento. Como o interesse dos investidores é principalmente motivado pela geração de lucro sobre o capital investido, cria-se uma dissociação entre o prestador e a finalidade social do serviço, gerando dúvidas quanto à plena realização dos direitos humanos à água e saneamento e seus múltiplos componentes como a igualdade e não-discriminação, acessibilidade, qualidade do serviço, transparência e participação social.
Referências
Blokland, M., Braadbaart, O. & Schwartz, K. (eds.) 1999. Private business, public owners. Government shareholdings in water enterprises.
Budds, J., & McGranahan, G. (2003). Are the debates on water privatization missing the point? Experiences from Africa, Asia and Latin America. Environment and urbanization, 15(2), 87-114.