14 de julho de 2021
Texto da interação ONDAS-Privaqua*
Luis Ferreira e Priscila Neves-Silva
No Brasil, o estímulo à privatização dos serviços de saneamento aumentou na década de 90, como parte da política internacional neoliberal de privatização de setores públicos e redução da atuação do estado em setores sociais como saúde e educação. No entanto, foram poucos os municípios que optaram por essa forma de prestação de serviço. Em 2020, após a aprovação da lei 14.026 que modificou o marco legal do saneamento no país, a privatização no setor foi ainda mais estimulada, o que pode resultar em um número maior de municípios com serviços de água e esgoto privatizados.
Atualmente, existem algumas formas possíveis de concretizar a prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Cabe ao titular, então, optar por prestação direta ou abrir à concorrência. A natureza jurídica do órgão responsável pela prestação pode ser: prestação direta da Prefeitura, usualmente sob a responsabilidade de alguma secretaria; autarquia, como os SAAEs; ; organização social; e . Em termos conceituais, a forma de prestação dos serviços não deveria alterar a garantia do cumprimento dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. No entanto, alguns estudos apontam que a prestação privada nem sempre é capaz de assegurá-los, e que a busca pelo lucro pode direcionar as escolhas das companhias pelos municípios onde irão atuar (Fuest & Haffner, 2007; Marson & Maggi, 2018; Peda & Vinnari, 2020). Dessa forma, analisar quais as principais características socioeconômicas e demográficas dos municípios onde já existe a prestação privada pode auxiliar a identificar onde, e de que forma, as empresas visam atuar no setor.
Assim, a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Básico (SNIS), foi feito o levantamento dos municípios com prestação privada para os serviços de água, esgoto, ou ambos, para o ano de 2019. Após esse levantamento, e utilizando dados do Censo 2010, analisaram-se as características socioeconômicas e demográficas desses municípios.
De acordo com os dados do SNIS, para o ano de referência, havia 205 municípios com prestação privada, um acréscimo de 25 municípios em comparação ao ano anterior. A prestação pode ser exclusivamente para abastecimento de água, exclusivamente para esgotamento sanitário, ou atendimento conjunto de água e esgoto. São 106 municípios para o primeiro caso, 82 municípios para o segundo, e apenas 6 com prestação conjunta.. Cabe ressaltar que o preenchimento do SNIS é de responsabilidade do município e da prestadora, portanto, a análise se restringe àqueles que foram adimplentes com o Sistema no ano base. A partir desse dado, já é possível verificar pela prestação do serviço de abastecimento de água em contraponto ao esgotamento sanitário.
Com relação à localização geográfica, observa-se que há municípios com prestação privada nas cinco macrorregiões, sendo que a região Nordeste tem o menor número deles, 4 municípios, e na região Norte se concentra o maior número, com 98 municípios, seguida da região Sudeste com 51, Centro-Oeste com 37 e Sul com 15. Quanto aos Estados, 15 unidades federativas possuem municípios cuja prestação é privada, sendo Tocantins com 79 municípios, seguido de Mato Grosso (36), São Paulo (25), Rio de Janeiro (20), Pará (14), Santa Catarina (13), Minas Gerais (5), Roraima (4) e Maranhão (3). Em 6 Estados, apenas um município tem este tipo de prestação (AM,ES,MS,PI,PR,e RS). Verifica-se que poucos municípios na região Nordeste foram privatizados e que a concentração de prestadores privados na região Norte se deve aos municípios do Tocantins, cuja privatização do serviço aconteceu em 1998 mas o estado acabou retomando o serviço de alguns municípios em 2013, ficando a empresa com os mais populosos e lucrativos, incluindo Palmas.
A média dos municípios com os serviços de saneamento privatizados apresentam como renda per capta o valor de R$589,13, um pouco maior que o valor referente à média dos municípios do país, que é de R$493,6. Além disso, a média de municípios com serviço privado com indivíduos com renda inferior a R$70 é de 8% contra 11% da média dos municípios do país. Percebe-se, também, ligeira diferença no Índice GINI sendo que a média dos municípios brasileiros apresentam um valor de 0,494 e os municípios com prestação privada,0,519, portanto municípios com maior concentração de renda. O índice de desenvolvimento humano também apresenta diferença. A média dos municípios brasileiros apresenta um valor ligeiramente inferior (0,659) em comparação à media daqueles com alguma prestação privada (0,689). As empresas privadas também operam nos municípios mais populosos. A média da população dos municípios com prestação privada é de 104.780 hab, enquanto a média de população por município no país é de um terço deste valor, 34.278 hab. No que se refere à porcentagem da população dos municípios que vive em domicílios com água encanada e banheiro exclusivo, verifica-se que a média no país é de 80,9% e nos municípios com prestação privada 83,3%, para o caso de domicílios que têm apenas água encanada, nos municípios com prestação privada 91% dos domicílios possuem este sistema, enquanto a média do país é de 86%. A Tabela 01 resume alguns dos indicadores mencionados.
Tabela 01: Características dos municípios com serviço privado no Brasil
Fonte: SNIS (2019), IBGE (2010)
Observa-se, também, diferença entre o atendimento às populações urbanas e rurais. Nos municípios com serviço privatizado a soma de população urbana é de 93%, enquanto no país é de 84%, como identificado no gráfico abaixo.
Fonte: SNIS (2019), IBGE (2010)
Estes dados sugerem que as empresas privadas atuam em municípios mais populosos, com melhor IDH e renda per capita, e com maior porcentagem da população morando em área urbana. Todas estas características podem favorecer a busca pela maximização de seus lucros, o que agrada aos acionistas. Dessa forma, resta a pergunta, de que forma as empresas pensam em operar no Brasil após a lei 14.026/2020? Elas terão interesse em assumir os serviços de municípios e regiões com maior índice de vulnerabilidade e assegurar a universalização dos serviços?
Referências:
Fuest, V., & Haffner, S. A. (2007). PPP – policies, practices and problems in Ghana’s urban water supply. Water Policy, 9(2), 169–192. https://doi.org/10.2166/wp.2007.060
Marson, M., & Maggi, E. (2018). Light public–private partnerships in the water supply sector: Malawi and other case studies from sub-Saharan Africa. Development Policy Review, 36(S1), O302–O320. https://doi.org/10.1111/dpr.12228
Peda, P., & Vinnari, E. (2020). The discursive legitimation of profit in public-private service delivery. Critical Perspectives on Accounting, 69, 102088. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2019.06.002