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Autora: Anelise Andrade de Souza*
O Brasil é um país marcado por desigualdades econômicas e sociais, com famílias em situação de vulnerabilidade social, com acesso limitado a renda, alimentação, serviços públicos de saúde e educação, além de condições inadequadas de moradia e acesso a serviços de saneamento, o que as torna mais susceptíveis a manterem ciclos de doença e pobreza. Intervenções estatais de saúde ambiental e outras que permitam que as pessoas saiam da situação de pobreza ou extrema pobreza, a partir de políticas públicas bem desenhadas e efetivas, podem proporcionar impactos sociais, ambientais e econômicos positivos, resultados esses observados a partir de inúmeras publicações científicas publicadas ao longo dos últimos anos e referenciadas em artigos derivados do nosso estudo (Souza et al. 2021a; Souza et al 2021b; Souza, Heller, 2021).
A partir da nossa inserção em estudos relacionados a Políticas de Saúde, Ambientais e de Proteção Social e diante de duas políticas públicas importantes, instituídas pelo Governo Federal nos anos de 2003 e 2007 – o Programa Bolsa Família (PBF) (Lei no 10.836/2004, Decreto no 5.209/2004) e a política de saneamento (Lei no 11.455) -, desenvolvemos estudo do tipo ecológico, com análise de 3.467 municípios brasileiros, com dados em painel, e recorte de tempo de 2006 a 2016. O objetivo principal do estudo foi avaliar o efeito combinado do PBF e do acesso da população ao saneamento adequado (a partir do acesso à água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos), nos desfechos morbidade e mortalidade por diarreia e desnutrição, em crianças menores de cinco anos de idade. Dessa forma, a pergunta norteadora de nosso estudo referiu-se à reflexão sobre se os esforços dos Governos Federal, Estaduais e Municipais de manutenção simultânea de políticas públicas (PBF e política de saneamento) resultam na diminuição de processos de morbidade e mortalidade por diarreia e desnutrição no público alvo do nosso estudo.
Inicialmente, por meio de revisão sistemática da literatura (Souza, Heller, 2021), foi possível observar a eficácia das duas políticas públicas, modificando positivamente determinantes sociais importantes para a manutenção da qualidade de vida e saúde da população exposta. No entanto, embora o PBF tenha completado, no ano de 2020 (ano de realização do estudo de revisão), 17 anos de existência e as intervenções em saneamento no Brasil tenham sido regulamentadas por meio de uma legislação federal desde o ano de 2007, nenhum estudo havia apresentado resultados que pudessem esclarecer a expectativa teórica existente, da presença de modificação do efeito de uma intervenção sobre a outra. A indagação é se podem ser esperados melhores resultados relacionados aos processos de morbidade e mortalidade por desnutrição e diarreia quando presentes simultaneamente condições adequadas de acesso a serviços de saneamento e coberturas elevadas da população pobre e extremamente pobre pelo PBF. Diante da falta de estudos relacionados a essa temática, pretendeu-se, a partir da utilização de dados secundários e de estudo ecológico, que pudesse abranger o maior número possível de municípios brasileiros, testar essa hipótese.
Isto posto, a partir do nosso questionamento foram realizadas inicialmente análises descritivas e posteriormente construídos modelos de regressão do tipo binomial negativa de efeitos fixos, que possibilitaram responder aos objetivos propostos, com desfecho de análise os processos de morbidade e mortalidade por diarreia e desnutrição: (i) avaliar o impacto do saneamento (acesso à água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos) na diminuição das taxas de morbidade e mortalidade pelas duas doenças; (ii) avaliar o impacto do PBF na diminuição das taxas de morbidade e mortalidade pelas duas doenças; (iii) estimar diferenças no perfil de morbidade e mortalidade pelas duas doenças ao longo dos anos de 2006 a 2016; (iv) estimar diferenças no perfil de morbidade e mortalidade pelas duas doenças relacionados às regiões brasileiras; (v) analisar os efeitos de interação entre o saneamento e o PBF, relacionados aos desfechos morbidade e mortalidade por desnutrição e diarreia, sendo esse o objetivo geral do estudo (Souza et al, 2021a; Souza et al, 2021b).
Os modelos estatísticos utilizados para responder aos objetivos (i) e (ii), possibilitaram observar para o desfecho mortalidade por desnutrição: aumento das taxas médias (efeito negativo) de mortalidade na medida em que também se aumentavam as coberturas municipais pelo PBF e diminuição das taxas médias (efeito positivo) na medida em que se aumentavam as coberturas relacionadas às covariáveis controladas nesse modelo, sendo elas: alfabetização da população com 15 anos ou mais e porte populacional. Por sua vez, para diarreia, tiveram efeito positivo as variáveis independentes: cobertura da população alvo pelo PBF e acesso aos serviços adequados de água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos. A variável cobertura da população total pelo PBF comportou-se de forma similar ao resultado observado no modelo de mortalidade por desnutrição (efeito negativo). As covariáveis controladas no modelo de mortalidade por diarreia e que apresentaram efeito positivo, foram: alfabetização da população com 15 anos ou mais, cobertura total pela ESF e renda mensal per capita e efeito negativo, taxa de urbanização. Por sua vez, para os desfechos morbidade por desnutrição e diarreia, ainda respondendo aos objetivos (i) e (ii), apresentaram efeito positivo as variáveis independentes: coleta de resíduos sólidos e acesso a serviços de esgotamento sanitário. Da mesma forma que nos demais modelos multivariados citados anteriormente, a variável cobertura da população total pelo PBF apresentou efeito negativo. Os modelos diferenciaram-se em relação às covariáveis significativas controladas, sendo para desnutrição efeito positivo: alfabetização da população com 15 anos ou mais e efeito negativo: renda mensal per capita. Para o desfecho diarreia apresentaram efeito positivo as covariáveis: alfabetização da população com 15 anos ou mais e efeito negativo: renda mensal per capita e taxa de urbanização. Para os quatro modelos construídos, o comportamento da variável cobertura da população total pelo PBF mostrou a excelente focalização do Programa, que apresentou maiores coberturas em municípios pobres e mais propensos a taxas mais elevadas de morbidade e mortalidade por doenças relacionadas à pobreza, como desnutrição e diarreia.
Ao longo dos anos de análise do estudo e a partir da descrição dos dados e análises multivariadas, foi possível observar, de forma geral, diminuição das taxas de morbidade e mortalidade por desnutrição e diarreia quando comparados os anos de 2006 e 2016. Para mortalidade por desnutrição, o único ano que apresentou aumento das taxas médias em relação ao ano anterior foi o 2009 e para diarreia, 2011. Para as morbidades, mesma tendência de decréscimo das taxas médias por desnutrição e diarreia foi observada, com leve pico das taxas de desnutrição nos anos 2008, 2011 e 2014 e para diarreia nos anos 2008, 2010, 2014 e 2016. As variáveis independentes que acompanharam esse processo de diminuição das taxas médias de morbidade e mortalidade e que tiveram aumento de suas coberturas durante os anos avaliados foram: acesso a esgotamento sanitário, coleta de resíduos sólidos, acesso da população à ESF, taxa de urbanização e renda mensal per capita. As análises multivariadas, para todos os modelos, mostraram efeito protetivo dos anos subsequentes ao ano de 2006, ano esse utilizado como referência de comparação. Dessa forma, os modelos corroboram os resultados descritivos, de tendência de diminuição das taxas médias de morbidade e mortalidade. A partir dessas análises foi possível alcançar o objetivo (iii) proposto.
Dando continuidade ao processo de descrição dos dados, foram realizadas análises por região brasileira, de forma a alcançar o objetivo (iv). Todas as regiões apresentaram diminuição das taxas de mortalidade e morbidade por desnutrição e diarreia quando comparados os anos de 2006 e 2016. No entanto, a partir da leitura longitudinal dos dados, em painel, observou-se que a região Norte apresentou as piores taxas de mortalidade (0,65/10.000) e morbidade (6,05/10.000) por desnutrição, assim como as piores taxas de mortalidade (0,21/10.000) e morbidade (185,5/10.000) por diarreia. Em relação às variáveis independentes relacionadas à cobertura da população total municipal e alvo pelo PBF, para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, ocorreu diminuição da cobertura da população total pelo PBF e diminuição da cobertura da população alvo do Programa nas regiões Centro-Oeste, Nordeste, Sudeste e Sul. Para acesso municipal a esgotamento sanitário, todas as regiões brasileiras apresentaram aumento da cobertura de esgotamento sanitário entre o primeiro e último ano de estudo, no entanto, somente a região Sudeste apresentou cobertura acima de 75%, a partir do ano de 2016. Sobre o acesso municipal à água, a região Nordeste foi a única que apresentou aumento da cobertura quando comparados os anos de 2006 e 2016, no entanto manteve valores muito abaixo dos valores praticados nas demais regiões do país. Os resultados dos modelos multivariados para o desfecho mortalidade por desnutrição e diarreia sugerem efeito protetivo da população que reside nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, quando comparados à região Norte do país. No entanto, a manutenção de diferenças regionais, com piores taxas médias na região Norte, seguida pelas regiões Nordeste e Centro-Oeste, mostram a necessidade de políticas públicas que possam resultar na equiparação das condições de saúde da população residente nesses locais, em relação às demais regiões que apresentaram melhores resultados referentes às suas taxas de mortalidade e morbidade por desnutrição e diarreia.
Por fim, o objetivo geral do estudo, de analisar os efeitos de interação entre o saneamento e o PBF, relacionados aos desfechos mortalidade e morbidade por desnutrição e diarreia, foi abordado. Para o desfecho mortalidade por diarreia, intervenções em saneamento (acesso à água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos) mostraram-se protetivas isoladamente ou quando presente coberturas altas da população municipal e alvo ao Programa. Municípios que apresentaram coberturas altas da população pelo PBF também tiveram seu efeito modificado positivamente na presença de coberturas acima de 60% de acesso à água e esgotamento sanitário acima de 50%, valores esses de esgotamento sanitário, acima da média de cobertura nacional. Já para desnutrição, os modelos sugerem que somente a presença de esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos em municípios pobres, com alta cobertura municipal pelo PBF, não resulta em avanços, diminuindo as taxas médias de mortalidade por essa doença. Por fim, para os modelos de interação que avaliaram os desfechos morbidade por desnutrição e diarreia, os resultados indicam que quando as duas políticas públicas foram incluídas na mesma equação, a presença de uma (intervenções em saneamento) modificou a ação da outra (PBF total), no entanto, sem resultar em menores taxas médias de morbidade por essas doenças. Em contraposição, as variáveis esgotamento sanitário e resíduos sólidos modificaram o efeito da variável água, resultando em ambientes protetivos quando presentes concomitantemente nos municípios.
Dessa forma, diante do exposto, conclui-se que, embora as taxas médias de morbidade e mortalidade por desnutrição e diarreia tenham apresentado tendência ao declínio entre os anos avaliados, a saúde de crianças na faixa etária de zero a cinco anos não pode ser negligenciada, visto a manutenção de taxas ainda altas, principalmente relacionadas às taxas médias de morbidade por diarreia, além de valores das taxas de morbidade e mortalidade por desnutrição e diarreia muito diferenciados de acordo com as regiões brasileiras, com piores incidências nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, de uma forma geral. O resultado do estudo comprova a ação positiva do PBF e de intervenções em saneamento, relacionadas ao acesso adequado à água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos. Além disso, sugere por meio dos modelos de interação, que essas duas políticas públicas podem modificar positivamente a ação uma da outra, proporcionando ambientes mais seguros. Por fim, sabendo-se que desnutrição e diarreia são causa e consequência do subdesenvolvimento e que acometem principalmente a população de baixa renda, o conhecimento produzido pelo atual estudo possui potencial para subsidiar discussões em relação à manutenção e/ou ampliação do PBF, com vistas a alcançar toda a população alvo do Programa, universalização do saneamento básico no Brasil, além de comprovar a importância da presença concomitante das duas políticas públicas em todos os municípios brasileiros, o que poderá resultar na diminuição das iniquidades em saúde. Outros estudos que possam avaliar causalidade da população exposta ao PBF e intervenções em saneamento, utilizando modelos de interação, são sugeridos, além de estudos com o mesmo enfoque que deem continuidade a este, a partir do ano de 2016.
Abranger toda a população alvo do PBF com os benefícios advindos dele e universalizar o saneamento, a partir de políticas públicas efetivas, é uma questão urgente no Brasil, com impactos sociais, ambientais e econômicos positivos esperados. A política de saneamento no país vinha experimentando desde o ano de sua instituição, em 2007, um novo ciclo com o marco legal, regulatório e institucional e retomada pelo Estado dos investimentos na área, e o PBF apresentava-se consolidado, com resultados expressivos nas condições de vida e saúde da população beneficiária. No entanto, no atual governo, e a partir de alterações nas legislações e caminhos dos programas, retrocessos são esperados, refletindo-se especialmente nas frações das classes sociais mais empobrecidas, que apresentam maior vulnerabilidade e, dessa forma, maior risco de adoecimento e morte.
Espera-se que nosso estudo possa contribuir para discussões acerca da importância da manutenção do PBF, com todas as suas características e da manutenção do saneamento como política pública e controle do Estado. Mesmo diante das limitações impostas pelo tipo de estudo selecionado para esta pesquisa, conseguiu-se estimar os efeitos da presença das duas políticas públicas nos municípios avaliados (Souza et al, 2021a; Souza et al, 2021b).
Referências
Souza AA, Heller L. Programa Bolsa Família e saneamento: uma revisão sistemática dos efeitos na diarreia e desnutrição. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 26 (8): 3087-3098, 2021.
Souza AA, Mingoti SA, Paes-Sousa R, Heller L. Combination of conditional cash transfer program and environmental health interventions reduces child mortality: an ecological study of Brazilian municipalities. BMC Public Health, 21:627, 2021a.
Souza AA, Mingoti SA, Paes-Sousa R, Heller L. Combined effects of conditional cash transfer program and environmental health interventions on diarrhea and malnutriotion morbidity in children less than five years of age in Brazil, 2006-2016. PLoS ONE, 16(3):e0248676. 2021b.
[i] Com base na tese de doutorado “Efeito da interação entre saneamento e o Programa Bolsa Família na morbidade e mortalidade por desnutrição e diarreia em crianças menores de cinco anos de idade: um estudo ecológico de municípios brasileiros”, defendida por Anelise Andrade de Souza no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto René Rachou, Fiocruz Minas em 2020. A tese foi orientada por Léo Heller e contou com co-orientação de Sueli Mingoti e Rômulo Paes de Sousa. Foi agraciada com Menção Honrosa do Prêmio Capes de Teses 2021, área saúde coletiva.
*Autora:
– Anelise Andrade de Souza – Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva Instituto René Rachou – Fiocruz Minas. Possui graduação em Nutrição pela Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP (2004), especialização em Alimentação e Nutrição do Escolar pelo Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar/CECANE UFOP/FNDE (2013) e mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Saúde e Nutrição (PPGSN), linha de pesquisa Nutrição em Saúde Coletiva, da Escola de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP (2015).