Como e por que a privatização dos serviços de saneamento afeta os direitos humanos?

Regularmente, o site do ONDAS publicará  notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.  Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanos.
Confira o primeiro texto. 


Léo Heller[1]

O Brasil vem ingressando em um experimento privatista sem precedentes no setor de saneamento em qualquer outro país no período mais recente. Trata-se de algo inédito se consideramos a escala almejada para a desestatização, a ambição de atração de recursos privados e o nível de transferência de recursos públicos para o setor privado na mira do governo. A iniciativa, ao não guardar qualquer referência na experiência recente de outros países, não consegue antever, com algum grau de confiança, resultados positivos para a universalização dos serviços, em linha com o marco dos direitos humanos.

Se algum país reorganizou seu setor de saneamento por meio de modelo similar, isto ocorreu somente há três décadas atrás, particularmente no Reino Unido e no Chile, sendo que fortes questionamentos sobre os resultados desse processo vêm se intensificando nas sociedades daqueles países. As tendências atuais no mundo, ao contrário do modelo em curso no Brasil, vão na verdade em outra direção, com a reversão das experiências de privatização impulsionadas pelas agências multilaterais, capitaneadas pelo Banco Mundial a partir do final da década de 1980.

Esse quadro vivido no Brasil dá sentido à pergunta que intitula este breve texto. A pergunta sugere a necessidade de uma migração, da visão intuitiva de que o movimento posto em marcha no país afetará os direitos humanos, para a construção de evidências baseadas no método cientifico que apontem para as consequências desse processo. Este é o objetivo do Projeto Privaqua, coordenado pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas) e integrado por um grande número de pesquisadores. O projeto é desenvolvido em estreita associação com o Ondas e pretende ampliar o leque de parceiros não governamentais, de tal forma a romper os muros da academia.

O projeto procura entender os processos de privatização no Brasil, sem deixar de examinar o contexto internacional, e é guiado pelo marco dos direitos humanos. No marco conceitual para abordar os processos de privatização, parte-se do pressuposto de que três fatores atuam para amplificar os riscos sobre os direitos humanos. Primeiramente, o fato de que os serviços de saneamento constituem-se um monopólio natural, sem concorrência na prestação dos serviços, limita a capacidade de sua regulação e de enquadrar o prestador no cumprimento das obrigações de direitos humanos do Estado. Segundo, observa-se um padrão das empresas prestadoras de serviços de busca pela maximização de seus lucros, o que pode trazer impactos tanto no aumento dos custos para o usuário e nos cortes de abastecimento, quanto na restrição de investimentos com expansão dos serviços, principalmente para as áreas mais pobres, e garantia de sua sustentabilidade. Terceiro, frequentemente há um desequilíbrio de poder entre as companhias, muitas vezes de grande porte, e os agentes públicos, o que pode exacerbar os efeitos dos dois fatores anteriores.

Com base nesse marco, o projeto se desdobra em diferentes subprojetos. De um lado, analisará as formas como a privatização vem afetando – ou não – os direitos humanos em diversas partes do mundo, com base em trabalhos publicados sobre o tema. Traçará também um perfil da participação privada no Brasil, comparando-a sempre que possível com a prestação pública de serviços. E, ainda, ao monitorar os recentes processos em curso de “regionalização para privatização” no país, busca entender os vários modelos adotados nos estados e a percepção de diferentes atores sobre esses processos. O projeto reúne ainda alunos de mestrado e doutorado, que, em suas pesquisas, vêm abordando facetas da privatização, em diferentes contextos.

Pretendemos publicar regularmente uma breve nota no site do ONDAS, de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares. Esperamos que a interação Privaqua-ONDAS seja frutífera e contribua para compreender – e atuar sobre – processos que possam comprometer os direitos humanos à água e ao saneamento dos excluídos dos serviços.

[1] Coordenador do Projeto Privaqua – Água, saneamento e direitos humanos, pesquisador do Instituto René Rachou