Autores: Ivanice Paschoalini, Natália Onuzik, Davi Victral e Priscila Neves
No dia 17 de novembro de 2021, a BBC News Brasil publicou uma matéria intitulada “A mãe de criança de cinco anos presa há 100 dias por furto de água”. O texto apresenta a história de uma diarista de 34 anos presa há pouco mais de cem dias, em uma cadeia pública de Minas Gerais, acusada de “furto de água”. O caso ocorreu em uma cidade do estado envolvendo um casal e uma criança de cinco anos moradores de um pequeno imóvel cedido, no qual o casal em questão havia violado por duas vezes o lacre do hidrômetro da residência, posto devido ao corte do abastecimento de água por falta de pagamento. A empresa prestadora dos serviços de abastecimento de água na região é a Copasa/MG.
A situação dessa família expõe diversas vulnerabilidades, as quais são agravadas devido à pandemia da Covid-19[1] e pela severa crise econômica que o país enfrenta[2]. Outro ponto que podemos destacar a partir desse caso é a violação aos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (DHAES). A acessibilidade física aos serviços de abastecimento de água não pressupõe a sua acessibilidade econômica frente à incapacidade de pagamento, tampouco a disponibilidade da água, ou seja, o acesso a uma quantidade de água potável suficiente para satisfazer o uso doméstico e as necessidades pessoais dos indivíduos e famílias[3].
Em 2017, o governo do Equador estabeleceu uma quantidade mínima de água requerida pela população, a ser fornecida gratuitamente pelos prestadores de serviço. Essa quantidade deveria ser suficiente para suprir as demandas básicas de cada residência, sem afetar a sustentabilidade econômica das empresas. Essa medida visou combater a escassez de água em regiões de alta vulnerabilidade socioeconômica e atenuar os riscos à saúde pública provenientes do uso de água não tratada[4]. No caso ocorrido em Minas Gerais, essa política poderia ter evitado o conflito da Copasa/MG com a família em questão. Em nota pública, a prestadora alegou que a prisão da mulher não decorreu do “furto de água”, mas por reação violenta à desconexão da água na residência[5].
No Brasil, as ações afirmativas para viabilizar a acessibilidade econômica aos serviços de abastecimento de água, como a Tarifa Social, em geral estão atreladas à inscrição prévia no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), o que requer, para além da comprovação de hipossuficiência financeira, que a titularidade da conta de água esteja em nome do potencial beneficiário, excluindo famílias como a relatada na matéria, que vivem em imóveis cedidos[6]. Tais requisitos, assim como a não aplicação automática da Tarifa Social a todos os inscritos no CadÚnico, bem como o enfrentamento de “filas” e demora para a efetivação dos cadastros, acentuam as vulnerabilidades enfrentadas por essas famílias [7]. Além disso, a proteção contra o corte no abastecimento de água durante a situação de pandemia é assegurada pela Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário (ARSAE – MG) somente aos usuários da tarifa social [8], embora no entendimento do Comitê de Direitos Humanos, Sociais e Culturais, o corte do abastecimento devido à incapacidade de pagamento seja uma medida de retrocesso e constitua violação dos DHAES [3].
A modicidade tarifária é um dos princípios jurídicos relacionados à prestação de serviços públicos no Brasil. O princípio determina que o Estado estabeleça políticas tarifárias de forma a viabilizar o acesso a esses serviços pela população em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O mecanismo de Tarifa Social, citado acima, tem um papel fundamental no processo de universalização do acesso a esses serviços e se ancora na adoção de subsídios cruzados entre diferentes categorias dos usuários. A efetiva aplicação desse mecanismo depende de contextos regionais e deve ser acompanhada de perto pela regulação do setor de abastecimento de água e esgotamento sanitário. O papel das agências reguladoras nesse contexto é de utilizar sua capacidade técnica e operacional no monitoramento e normatização desse mecanismo, com o intuito de ampliar ao máximo sua presença, e estratificar de forma eficaz as categorias com o propósito de não discriminar nenhuma parcela da população [9].
Os princípios transversais a todos os direitos humanos orientam como os DHAES devem ser realizados e, entre eles, está o princípio da igualdade e não discriminação. Nesse sentido, os direitos humanos requerem que todos tenham igual acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, respeitando as necessidades específicas e as interseccionalidades nos diferentes grupos sociais, com atenção especial àqueles em situações de vulnerabilidade, de modo a corrigir os fatores que causam discriminação e desigualdades, obstáculos para a fruição dos direitos [10].
Sob o prisma desse princípio, é importante destacar que a discussão perpassa pela desigualdade de gênero. O corte de água afeta severamente as mulheres enquanto cuidadoras de família, e a desigualdade de gênero no usufruto dos DHAES viola, também, o direito de mulheres e meninas à saúde. Tal desigualdade é agravada quando falamos dessas mulheres e meninas vivendo em situação de pobreza, desprotegidas socialmente, vulneráveis em relação à moradia ou privadas de liberdade, como o exemplo em questão. Nesses casos, elas estarão mais expostas ao risco de violência física, sexual, ao stress psicossocial e às múltiplas formas de exclusão. Acrescido a esse contexto, a acessibilidade econômica, muitas vezes, pode se tornar uma preocupação a mais para as mulheres que chefiam famílias, dependem economicamente ou dispõem de menos recursos financeiros que os homens [11].
A deterioração do ambiente econômico devido ao Covid-19 requer ações emergenciais dos governos visando garantir que os serviços de água sejam mantidos e não descontinuados para aqueles que não possam pagar as tarifas. É essencial coibir e reverter o corte dos serviços de abastecimento de água devido à incapacidade de pagamento das contas. É fundamental a coordenação com as empresas prestadoras de serviços, a implementação emergencial e manutenção dessas medidas [12].
Outro tópico abordado pela matéria da BBC News Brasil diz sobre o princípio da insignificância[5]. Tal princípio consiste na proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal, no caso, o abastecimento de água provido pela empresa Copasa/MG. O princípio ainda tem como finalidade excluir a tipicidade do fato em virtude da ausência da tipicidade material, ou seja, considera-se crime o fato típico (tipicidade), antijurídico e culpável. Quando um destes elementos não está presente, não há crime ou ele não é punível. No caso da tipicidade, trata-se da conduta humana voluntária que produz um resultado descrito na lei como crime. Assim, a conduta deveria ser afastada porque a materialidade é de pequeno valor.
“A insignificância não é exceção à legalidade, mas princípio complementar densificador de seu conteúdo material. Onde não se valoriza a legalidade, qual será o papel da insignificância? Ao contrário de grande parte da doutrina, menos atenta a esse aspecto, entendo que o que justifica modernamente o princípio da insignificância e sua aceitação no Direito Penal não é o seu caráter opositor ao direito positivo, qual fosse uma solução extrajurídica para problemas aplicativos daquela modalidade descritiva de direito, mas a sua natureza intrínseca à normalidade jurídica.”[13]
A jurisprudência majoritária nos tribunais brasileiros considera o salário mínimo como teto para caracterizar o que venha a ser objeto de pequeno valor. A lei penal jamais deve ser invocada para atuar em casos menores, de pouca ou escassa gravidade. É o princípio da insignificância que surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullun crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do Direito Penal.
Pois bem, o que falta à legislação brasileira é o reconhecimento e a aplicabilidade imediata da água e do esgotamento sanitário como sendo direitos humanos fundamentais. Com isso, certamente o desfecho desse caso seria diferente. Se essa família tivesse minimamente garantida uma vida digna, água para alimentação e higiene pessoal, obedecida as normativas emergenciais da agência reguladora frente à pandemia do Covid-19, que dispõe sobre a impossibilidade de corte por falta de pagamento, qual crime restaria? Teria a Copasa/MG, por intermédio dos seus funcionários, acionado a polícia militar para restaurar qual ordem pública?
De fato, o que se tem é a combinação entre uma empresa abusando do seu papel de fornecer os serviços, sem discriminação, e uma polícia despreparada para distinguir entre o desespero de uma mãe frente ao filho de cinco anos e o desacato à autoridade. Tal combinação resulta no encarceramento de uma mulher em situação de vulnerabilidade socioeconômica por um prazo maior que o permitido no direito processual penal para o encerramento do processo criminal. Além disso, se crime houve, é insignificante.
Referências
[1] https://www.cepal.org/pt-br/comunicados/pandemia-provoca-aumento-niveis-pobreza-sem-precedentes-ultimas-decadas-tem forte#:~:text=Essas%20atingiram%2049%2C4%25%20da,37%2C2%25%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 22 nov 2021.
[2] https://www.cnnbrasil.com.br/business/economia-do-brasil-deve-ter-pior-desempenho-do-g20-em-2022-diz-pesquisa/. Acesso em 22 nov 2021.
[3] ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Acessibilidade econômica do ponto de vista dos direitos humanos à água potável e ao esgotamento sanitário. 2015. Disponível em: https://ondasbrasil.org/relatorios-sobre-direito-humano-a-agua-potavel-e-ao-esgotamento-sanitario-autor-leo-heller/. Acesso em 23 noc 2021.
[4] MOSCOSO, Andrés Martínez; FEIJÓ, Víctor Gerardo Aguilar; SILVA, Teodoro Verdugo. The vital minimum amount of drinking water required in Ecuador. Resources, v. 7, n. 1, p. 1–16, 2018.
[5] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59314206?utm_campaign=later-linkinbio-bbcbrasil&utm_content=later-22361735&utm_medium=social&utm_source=linkin.bio. Acesso em 22 nov 2021
[6] BRITTO, A L. As tarifas sociais de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil: seus impactos nas metas de universalização na garantia dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Disponível em: <https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2020/05/As-tarifas-sociais-de-abastecimento-de-%C3%A1gua-e esgotamento-sanit%C3%A1rio-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 23 nov 2021.
[7] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/11/05/filas-no-cadunico-sem-bolsa-familia-e-auxilio-emergencial-populacao-faz-filas-em-busca-do-auxilio-brasil.ghtml. Acesso em 22 nov 2021
[8] http://www.arsae.mg.gov.br/2020/03/25/coronavirus-arsae-mg-autoriza-suspensao-de-corte-de-agua-em-itabira/. Acesso em 23 nov 2021.
[9] REIS, Camila Antonieta Silva; CARNEIRO, Ricardo. O Direito Humano à Água e a Regulação do Saneamento Básico no Brasil: Tarifa Social e Acessibilidade Econômica. Desenvolvimento em Questão, v. 19, n. 54, p. 123–142, 2021.
[10] ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Visão geral do marco dos direitos humanos à água, esgotamento sanitário e higiene. Padrões para avaliação de diferentes níveis e tipos de serviço do ponto de vista dos direitos humanos. 2015. Disponível em: https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2019/09/OITAVO-Relat%C3%B3rio-%E2%80%93-Direitos-humanos-%C3%A0-%C3%A1gua-pot%C3%A1vel-e-ao-esgotamento-sanit%C3%A1rio.pdf. Acesso em 23 nov 2021.
[11] ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Igualdade de gênero na realização dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. 2016. Disponível em: https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2019/09/S%C3%89TIMO-Relat%C3%B3rio-%E2%80%93-Direitos-humanos-%C3%A0-%C3%A1gua-pot%C3%A1vel-e-ao-esgotamento-sanit%C3%A1rio.pdf. Acesso em 23 nov 2021.
[12] DE FRANÇA DORIA, Miguel et al. Preliminary Assessment of COVID-19 Implications for the Water and Sanitation Sector in Latin America and the Caribbean. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 21, p. 11703, 2021.
[13] LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. São Paulo:Ed. RT. 2000, p. 38.