Paulo Freire e a defesa dos direitos humanos

Autora: Marta Luiza Dias [1]

O Projeto Privaqua procura analisar as experiências de privatização dos serviços de saneamento através da lente dos direitos humanos. Para o Projeto, portanto, é relevante aprofundar no entendimento desse conceito e rastrear possíveis interpretações sobre os direitos humanos desenvolvidas por diferentes autores e escolas de pensamento. Nessa perspectiva, situamos a teoria freireana.

Em 2019 foi lançada a Campanha Latino-Americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire, uma iniciativa impulsionada pelo Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe (CEAAL) em celebração do centenário de Paulo Freire. Celebrações em torno dos seus cem anos estão sendo realizadas em diferentes partes do mundo. Mas por que celebrar o centenário de Paulo Freire e quais as contribuições desse educador para o referencial dos direitos humanos?

Primeiramente porque sua pedagogia é uma pedagogia universal, que cruzou as fronteiras das disciplinas, das ciências e das artes para além da América Latina, criando raízes nos mais variados solos. Celebrar Paulo Freire é lutar em prol de uma educação em defesa dos direitos humanos. Educação urgente e necessária que, em tempos de retrocessos sociais e políticos, de um conservadorismo crescente e fundamentalista, referenciais como os de Paulo Freire aparecem como uma possibilidade de resistência e luta em defesa dos direitos humanos.

Celebrar o centenário de Paulo Freire é contrapor-se à perseguição ideológica ao pensamento crítico, é contrapor-se às reformas neoliberais, à ofensiva conservadora. Essa celebração nos convida a lutar coletivamente contra as injustiças sociais, contra as artimanhas do capitalismo que busca transformar bens e serviços públicos em negócios, mercadorias e em produtos à venda.

Nesse cenário de aprofundamento das desigualdades sociais e permanência dos processos históricos de opressão, torna-se relevante o fortalecimento do debate sobre a atualidade do pensamento e da pedagogia freireana, bem como sua reinvenção em contextos concretos de resistência às mais diversas formas de violação dos direitos humanos.

Trazer a Pedagogia do Oprimido para o atual contexto de violação dos direitos é uma pauta necessária e urgente, especialmente porque a defesa intransigente e radical dos direitos humanos perpassa os diferentes momentos da trajetória pessoal e profissional de Paulo Freire. 

A ofensiva contra o pensamento crítico de Paulo Freire

Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife. Sua paixão pela educação, marcada pela “vocação de ser mais”, o converteu em um pedagogo de renome internacional. Sua educação libertadora, anti-imperialista e anticapitalista tornou-se um dos mais importantes referenciais para a ação educadora escolar e não escolar nos cinco continentes. Essa concepção de educação foi se desenvolvendo ao longo de sua trajetória pessoal, acadêmica e profissional, sendo registrada em várias de suas obras.

Foi com o livro Pedagogia do Oprimido que Paulo Freire tornou-se um dos educadores mais lidos e um dos autores mais citados mundialmente. Pedagogia do Oprimido foi traduzido para mais de quarenta idiomas e é o terceiro livro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo.

Paulo Freire é o cidadão brasileiro mais homenageado mundo afora. Possui mais de 30 títulos de Doutor Honoris Causa e cerca de 20 prêmios concedidos por diversas universidades e instituições nacionais e internacionais.

Em 2017 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), incluiu a obra de Paulo no programa Memórias do Mundo, reconhecendo-a como Patrimônio da Humanidade. No Brasil, Paulo Freire foi considerado o Patrono da Educação Brasileira por meio da Lei nº. 12.612/2012 (CEALL, 2019).

Apesar disto, assistimos a uma forte ofensiva ideológica das elites opressoras, que ameaçadas pela possibilidade de libertação do oprimido, destrói e mistifica a concepção freireana, sobretudo pela sua dimensão dos direitos humanos. Colocam em seu lugar uma visão conservadora, reacionária e fundamentalista de mundo, que reforça as opressões a que estão submetidas grande parte da população mundial, principalmente nos países do Hemisfério Sul.

Particularmente no Brasil, Paulo Freire foi eleito pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro como inimigo prioritário no campo ideológico e educacional. Assim como Freire foi obrigado ao exílio em 1964 pelo golpe militar que impôs uma ditadura civil-militar de 21 anos em nosso país. Agora, tentam submetê-lo a um segundo exílio. Desta vez, ideológico, expurgando Paulo Freire da educação por meio de tentativas da revogação da Lei nº. 12.612/2012 e instituição da Escola sem Partido, que estabelece formas coercitivas de controle sobre o trabalho docente, pondo fim à liberdade de ensino e impondo um pensamento único a serviço da doutrinação e da colonização das mentes (CEAAL, 2020).

A Pedagogia do Oprimido e direitos humanos

O legado de Paulo Freire e de sua Pedagogia do Oprimido não estão limitados ao espectro escolar. Eles perpassam direta ou indiretamente diversos espaços, como a educação, saúde, política, saneamento, dentre outros, em que historicamente persiste a negação intencional e sistemática dos direitos humanos.

Paulo Freire não sistematizou discussões específicas ou construiu um referencial teórico sobre os direitos humanos. Porém, sempre buscou ressaltar a “necessidade de uma educação libertadora e humanizadora, que na sua essência e natureza tem como centralidade a possibilidade de superação das condições e das relações de opressões que aniquilam os direitos humanos” (FREIRE, 2019, p. 17).

Discutir sobre os desdobramento e alongamentos de sua pedagogia, especialmente a Pedagogia do Oprimido, para os direitos humanos é uma pauta que emerge de um contexto crítico e frágil, no qual se torna urgente a denúncia da violação dos direitos humanos, bem como o anúncio de ações concretas para a defesa da dignidade humana. A violação generalizada dos direitos humanos inclui a praticada pelas mais diversas instâncias e instituições de nossa sociedade, inclusive com anuência e exercício por parte do Estado.

No interior desses espaços, a trajetória pessoal e a prática profissional de homens e mulheres não são neutras frente à humanização ou à desumanização do ser humano. Sempre estarão a favor da mudança dirigida à verdadeira humanização ou a favor da permanência do que já não representa os caminhos do humano (FREIRE, 1987). Ou seja, o Estado que viola ou defende objetivamente os direitos humanos é operado por indivíduos ou grupos de indivíduos com um interesse particular ou com o interesse de emancipação da humanidade em geral.

Paulo Freire defende o valor da vida na sua universalidade e sob todas as formas. Nos adverte sobre a urgência de luta pelos princípios éticos mais fundamentais, como o respeito à vida dos seres humanos, dos outros animais, à vida das águas e da floresta (FREIRE, 2000). Nesse sentido, direitos humanos estão relacionados à defesa veemente de um projeto ético-político-pedagógico elaborado e comprometido com o povo, cujo objetivo é a humanização e a luta contra todas as formas de desumanização, contra a impunidade, a violência, contra qualquer tipo de “mentira e de desrespeito à coisa pública” (FREIRE, 2000, p.61).

Colocar em prática a Pedagogia do Oprimido é lutar e propor ações concretas de superação para a falta de escola, de casa, de teto, de terra, de hospitais, de transporte, de segurança e de saneamento. Praticar a Pedagogia do Oprimido é lutar contra a falta de esperança em consequência da ideologia neoliberal e da insensatez dos opressores, que tentam a todo custo, todos os dias, em todos os espaços da sociedade, naturalizar a miséria, a pobreza e, disfarçadamente, impedir “a briga em favor dos direitos humanos, onde quer que ela se trave. Do direito de ir e vir, do direito de comer, de vestir, de dizer a palavra, de amar, de escolher, de estudar, de trabalhar. Do direito de crer e de não crer, do direito à segurança e à paz” (PAULO FREIRE, 2019, p.130).

A Pedagogia do Oprimido apresenta-se como referencial ético-político-pedagógico comprometido com os oprimidos, com a defesa e resgate de direitos inerentes à pessoa humana e à vida em sociedade. Direitos humanos não podem ser tratados como privilégios de poucos, tampouco devem ser controlados pelos opressores.

Paulo Freire não faz referências específicas a nenhuma declaração ou tratado de Direitos Humanos, mas considera que uma das primordiais tarefas da Pedagogia do Oprimido, “como uma pedagogia crítica radical e libertadora, é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta” (FREIRE, 2000, p.63).

A Pedagogia do Oprimido defende a construção de uma cultura sobre os direitos humanos, de forma que se tornem uma temática urgente na conjuntura atual, onde são sistematicamente desrespeitados, ignorados, violados e combatidos.

Num contexto em que os Estados e as sociedades convivem com uma forma de progresso opressor, que beneficia a estrutura econômica desigual, a acumulação capitalista, a concentração das riquezas e as desigualdades sociais, a Pedagogia do Oprimido é uma possibilidade para superação dessas formas de opressão.

Possibilidade é uma categoria fundamental na obra de Freire. Está associada a uma atitude transformadora frente à realidade observada e se apresenta como decisão, escolha, intervenção que desafia os oprimidos a perceberem criticamente a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta no mundo e com o mundo (FREIRE, 2000).

As contribuições práticas e teórico-metodológicas da Pedagogia do Oprimido continuam vivas e são cada vez mais presentes e necessárias à ação educadora daqueles e daquelas que lutam em defesa dos direitos humanos. Assim, reinventar Freire e sua Pedagogia do Oprimido é uma pauta urgente para assegurar a vivência minimamente humana dentro da grande teia capitalista que impõe a maximização do lucro acima de tudo.

REFERÊNCIAS
CEAAL. Manifesto de lançamento campanha latino-americana e caribenha em defesa do legado de Paulo Freire. 2019
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
FREIRE, P. Pedagogia da Indignação, São Paulo, Unesp, 2000
FREIRE, P. Educação e Mudança. Paz e Terra. 34ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2011
FREIRE, A. M. A.; MENDONÇA, E. F. Direitos humanos e educação libertadora: gestão democrática da educação pública na cidade de São Paulo. 1.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019
GADOTTI, M. Convite a leitura de Paulo freire. Editora Scipione Ltda., São Paulo, 1989

[1] Marta Luiza Dias. Pedagoga. Analista de Saneamento na Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa). Doutoranda em Saúde Coletiva/Fiocruz MG. Membro do projeto Privaqua/Fiocruz. Coordenadora da Rede de Educação Popular e Saúde – Redepop (Hospedada na Universidade Federal da Paraíba, a Redepop iniciada em 2002, é uma de rede virtual de articulação de profissionais de saúde, pesquisadores e lideranças de movimentos sociais que têm a Educação Popular como estratégia de militância, trabalho e pesquisa no campo da saúde coletiva. Para mais informações: https://www.ufpb.br/redepopsaude.