Autora: Priscila Neves Silva
No dia 07 de outubro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro vetou uma das principais medidas do projeto de lei 4.968/2019 de autoria da deputada federal Marilia Arraes (PT-PE), que previa a distribuição gratuita de absorventes para mulheres e meninas de baixa renda. Os absorventes seriam incluídos em cestas básicas e distribuídos para estudantes de escolas públicas, mulheres em situação de rua e encarceradas. Esse projeto de lei, aprovado no Senado em setembro de 2021, tem como objetivo instituir um Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. O veto do presidente jogou luz sobre um assunto que precisa ser amplamente debatido em todos os espaços: a pobreza menstrual.
A pobreza menstrual pode ser entendida como a falta de acesso a itens básicos para que a gestão da menstruação possa ser realizada de forma correta e saudável, como absorventes e infraestrutura básica de água e esgoto. O acesso a banheiros adequados é essencial para garantir a saúde e dignidade ao permitir a troca do item utilizado para absorção do fluxo, o descarte dos produtos menstruais usados, e água e sabão para lavagem das mãos e do corpo.
No Brasil, cerca de 60 milhões de pessoas menstruam (30% da população total), mas o acesso a serviços de água e esgoto que permitam a correta gestão da menstruação ainda é um grande desafio, o que pode resultar em vários problemas de saúde, como infecções do trato genitourinário, além de questões relacionadas à saúde mental, como estresse, vergonha, medo e ansiedade (GIRLUP, 2021, SOMMER et al., 2016). Contudo, para além das questões de saúde, a falta de acesso a ambiente com infraestrutura adequada para a gestão menstrual traz inúmeras consequências sociais e econômicas para todas as pessoas que menstruam, como acesso à escola e atividades geradoras de renda. A dificuldade na gestão da menstruação durante o período escolar, por exemplo, resulta na evasão de adolescentes com consequências duradouras para a equidade de gênero. No Brasil, segundo pesquisa realizada pela Always, uma entre quatro estudantes já deixou de ir à escola por não ter absorventes (ALWAYS, 2020). Com relação às atividades geradoras de renda, muitas mulheres são obrigadas, durante o período menstrual, a faltar ao trabalho, tanto formal quanto informal, por não terem onde e como realizar a higiene adequada, o que resulta em perda salarial (SOMMER et al., 2016).
Entretanto, estas consequências não acometem todas as mulheres e meninas do país de forma equânime. São as mulheres e meninas negras e de baixa renda as mais afetadas, o que torna necessário olhar para a questão da pobreza menstrual sob a ótica da interseccionalidade. As diversas categorias que determinam a diversidade social, como sexo, classe, raça, identidade de gênero, entre outras, interagem e se sobrepõem, resultando em um sistema de opressão e discriminação enraizado nas relações estruturais de poder e que reproduzem injustiças sociais entre gerações. Assim, estas diferentes dimensões fazem com que questões sociais tenham impactos diferentes na vida das pessoas (CRENSHAW, 2002). Com a menstruação não é diferente. São as meninas e mulheres negras e de baixa renda que têm maior dificuldade no acesso a itens básicos que permitam a correta higienização durante o período menstrual. Pesquisa realizada pelo movimento Girl Up aponta que 22% das brasileiras de 12 a 25 anos não têm acesso a produtos que garantam a correta higiene menstrual porque não têm dinheiro para comprá-los ou estes não são vendidos próximo de onde moram. Ademais, as meninas negras gastam 18% a menos com produtos para higiene menstrual. Grande parte destas vivem no nordeste, sendo que muitas não têm acesso a banheiro de forma adequada, seja em casa ou na escola (GIRLUP, 2021; UNICEF/UNFPA, 2021).
Relatório da Unicef e do Fundo de População das Nações Unidas, divulgado em 2021, aponta que no Brasil, 713 mil meninas não têm acesso a nenhum banheiro (com chuveiro e sanitário) em suas casas, sendo que 88,7% delas, ou seja, 632 mil, vivem sem acesso sequer a um banheiro de uso comum no terreno ou propriedade. Cabe ressaltar que a chance de uma menina negra não possuir acesso a banheiros é quase 3 vezes a de uma menina branca nas mesmas condições. Além disso, uma menina que mora na região Nordeste tem 23 vezes mais chance de residir em locais sem banheiro exclusivo para os moradores dentro de seus domicílios ou terrenos, quando comparado com uma menina da região Sudeste. E, 37% das meninas negras residem em locais sem serviço de esgoto contra 24% das meninas brancas. No que se refere ao acesso à água, 570 mil meninas não possuem acesso à água canalizada em seu domicílio, ou mesmo no terreno onde moram, e 2,8 milhões de meninas (18% do total) moram em domicílios cujo abastecimento de água não provém da rede geral de abastecimento, mas de poços, água de chuva armazenada ou outras fontes. Dentre aquelas que recebem água da rede, 2,3 milhões não recebem água todos os dias e, destas, 17.5% são pardas e 15,7% são negras, porcentagem maior que a média do país, que é de 13,2%(UNICEF/UNFPA, 2021; GIRLUP,2021).
No Brasil, das 7,5 milhões de meninas que menstruam e frequentam a escola, 3% delas vão a escolas que não possuem banheiro em condições de uso, 37,8% delas estão no Nordeste e 65% são negras ( IBGE, 2015; GIRLUP, 2021; UNICEF/UNFPA,2021). Se olharmos apenas para a área rural, 6,4% das meninas estudam em escolas sem banheiros em condições de uso. Além disso, 4,1% das meninas estudam em escolas que não possuem separação de banheiro por sexo, sendo que a maioria delas, 52%, estão na região Nordeste. Se olharmos apenas para a região rural esse problema é ainda maior: a chance de que uma menina que vive na região rural estude em escola sem banheiro separado por sexo é de 138% quando comparado com meninas na área urbana. A questão da separação por sexo é importante pois muitas meninas se sentem inseguras ao utilizar banheiros mistos e por isso evitam beber água na escola e não frequentam a aula durante o período menstrual (NAUGES E STRAND, 2011).
O acesso à infraestrutura que proporcione a correta higiene das mãos é outra questão importante a ser analisada. Segundo o JMP, 39% das escolas no Brasil não dispõem de estrutura básica para lavagem das mãos (WHO/UNICEF,2020). Com isso, quase 652 mil meninas, 6% do total, não possuem acesso a pias ou lavatórios em condições de uso na escola e 3,5 milhões de meninas não têm acesso a sabão. Destas, 62,6% são negras e pardas (GIRLUP,2021;UNICEF/UNFPA,2021). O relatório da UNICEF/UNFPA finaliza concluindo que 200 mil alunas estão totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da sua menstruação na escola, ou seja, não têm acesso a nenhum item de higiene básica, sendo que este percentual é maior nos estados do Acre (5,75%), Maranhão (4,8%), Roraima (4,1%), Piauí (4,0%) e Mato Grosso do Sul (3,6%) (UNICEF/UNFPA,2021).
Importante salientar que mesmo quando há banheiro na escola eles são em número insuficiente para atender a quantidade de estudantes, muitas meninas preferem não utilizar devido a falta de manutenção que resulta em um ambiente sujo e com mal cheiro e, muitas vezes, não asseguram privacidade devido a ausência, ou mau funcionamento, das portas. Além disso, os banheiros são trancados em determinado horário, após a limpeza, para que fiquem limpos e possam ser usados no turno seguinte, com isso, não estão disponíveis sempre que as estudantes precisam (COSWOSK et al, 2019).
Cabe ressaltar que os dados trazem a realidade de meninas e mulheres, mas não retratam a situação das pessoas trans, intersexo, não binárias, em situação de rua ou que vivem em prisões. Para estas, a invisibilidade da situação é ainda maior. A falta de acesso a serviços adequados de água e esgoto em espaços públicos, a precariedade destes serviços nas prisões e a ausência de banheiros capazes de garantir não só a higiene adequada e dignidade das pessoas trans, intersexo e não binárias, como também serem considerados por elas ambiente seguro, coloca estes indivíduos em situações de alta vulnerabilidade com relação à pobreza menstrual.
Ao analisarmos essa realidade, cabe perguntar se o processo de privatização dos serviços públicos de água e esgoto em curso no país será capaz de garantir o acesso adequado a instalações que permitam a higiene adequada durante o período menstrual para meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade. Os dados mostram que as meninas negras que vivem no Nordeste e em áreas rurais são as que mais sofrem com a falta de acesso. O aumento da tarifa, que muitas vezes vem acompanhado da privatização dos serviços, pode aumentar ainda mais a situação de pobreza menstrual. Dessa forma, é necessário que a sociedade possa acompanhar este processo de forma a garantir que o acesso à água e ao esgotamento sanitário possa seguir o principio de não-discriminação, assegurando acesso adequado para todas em todos os espaços.
Referências:
ALWAYS. Always contra a pobreza menstrual no Brasil. Menina ajuda Menina. 2020. https://www.alwaysbrasil.com.br/pt-br/meninaajudamenina
COSWOSK et al. Having a toilet is not enough: the limitations in fulfilling the human rights to water and sanitation in a municipal school in Bahia, Brazil. BMC Public Health, 19 (137):2-9, 2019.
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10 (1):171–188, 2002
GIRLUP. Livre para menstruar. Pobreza menstrual e educação de meninas. 2021. Acesso em 15 out 2021. Disponível em: https://livreparamenstruar.org/sobre/#relatorio
NAUGES, C.; STRAND, J. Water hauling and girls’ school attendance: Some new evidence from Ghana. Policy research working paper No. 6443. Washington: The World Bank. 2011.
SOMMER M, et al. Managing menstruation in the workplace: An overlooked issue in low- and middle-income countries. Int J Equity Heal. Jun 6;15(1), 2016
UNICEF/UNFPA. Pobreza menstrual no Brasil. Desigualdades e violações de direitos. 2021. Acesso em 15 out 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf
WHO/UNICEF. JMP. Hygiene Baselines pre-COVID-19UNICEF Regional Office for Latin America and Caribbean. 2020. Acesso em 15 out 2021. Disponível em: https://data.unicef.org/resources/handwashing-data-covid-19-response/#12047-3
*Autora:
– Priscila Neves Silva – Doutora e Mestre em Saúde Coletiva pelo Centro de pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, atualmente faz Pós-Doutorado junto ao grupo de pesquisa de Direitos Humanos e Políticas Públicas em Saúde e Saneamento da mesma instituição. É mestre em Epidemiologia e Saúde Pública pela Universidad Rey Juan Carlos (Espanha) e graduada em Fisioterapia pela PUC-MG.