Por que a Lei nº 14.026/2020 é considerada inconstitucional?

Autores: Ivanice Milagres Presot Paschoalini[1]; ; José Irivaldo Alves O. Silva[2] ; Laiana Carla Ferreira[3]

A partir do ano de 2007, a Lei nº 11.445 instituiu um marco regulatório estabelecendo diretrizes nacionais para o setor de saneamento básico. Contudo, ao longo do tempo sobrevieram diversas tentativas de alteração na referida lei através de instrumentos legislativos precários – as medidas provisórias (MP nº 844/2018 e MP nº 868/2018). As medidas provisórias são normas com força de lei editadas pelo Presidente da República, em situações de relevância e urgência; e que, no presente caso, trouxeram alterações que geraram diversas controvérsias. Tal intuito de alteração legislativa culminou, por fim, na edição da lei nº 14.026, no ano de 2020.

Ante a sua confecção conturbada, após a vigência da Lei n. 14.026/2020, conhecida como “novo” marco do saneamento, ainda pairam dúvidas acerca da constitucionalidade de vários de seus artigos. Fato é que foram ajuizadas quatro Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (ADIs), questionando a validade constitucional de diversos artigos da referida lei. Atualmente, tramitam em conjunto no Supremo Tribunal Federal, com julgamento agendado para o dia 9 de novembro próximo, as seguintes ADIs:

  • ADI n. 6492 interposta pelo PDT;
  • ADI n. 6536 interposta pelo PT, PSOL, PSB e PC do B;
  • ADI n. 6882 interposta pela Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (AESBE);
  • ADI n. 6583 interposta pela Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE).

O quadro 1 apresenta uma síntese dos argumentos das ações que se extraíram a partir da leitura das petições iniciais.

Quadro 1 – Síntese dos argumentos acerca da inconstitucionalidade da lei n. 14.026

É possível concluir a partir do disposto no quadro 1 que se sobressai, em todas as ações, a ideia de violação ao pacto federativo como sendo o mais patente dos problemas. Isso se apresenta principalmente pelas competências atribuídas à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e restrições impostas à autonomia municipal para a gestão e prestação dos serviços. No caso da ANA, isso se deve essencialmente às suas novas atribuições, de elaboração de Normas de Referência, uma vez que esta competência está fora do escopo da competência  constitucional da União, que deve delinear somente diretrizes sobre a referida matéria, sem interferência no campo de atribuições municipais.

Cabe destacar que os questionamentos giram na órbita das competências do Município, pois os serviços de saneamento compreendem atribuições inerentes ao interesse local. Indica-se que diversos dispositivos do Novo Marco Legal do Saneamento ofendem o modelo republicano e federativo adotado no Brasil (art. 1º), ou seja, atingem frontalmente a autonomia dos poderes (art. 2º), a autonomia dos entes federativos (art. 18), especificamente em relação aos Municípios; a competência da União para instituir somente diretrizes para o saneamento básico (art. 21, XX); as normas gerais de licitação e contratação, editadas pela União (art. 22, XXVII); a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em matéria de saneamento básico (art. 23, IX) e para legislarem sobre procedimentos em matéria processual e proteção e defesa da saúde (art. 24, XI e XII); e competência dos Estados-membros para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º), a autonomia municipal e a cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, caput e XII).

A ADI n.º 6492 argumenta, também, que houve violação à autonomia federativa já que a União reforça exaustivamente, na lei 14.026, um caráter regulatório que não tem, de maneira que os entes federativos não conseguem se adequar observando suas peculiaridades regionais e locais, especialmente porque se trata de assunto afeto ao local, portanto ao Município. Sendo assim, haveria violação do pacto federativo, não só por causa do aumento nas prerrogativas da ANA, mas também no estabelecimento de dispositivos que restringem a atuação dos municípios na instituição de movimentos associativos no sentido de fornecer os serviços de saneamento básico. Cabe lembrar que o STF já decidiu pela titularidade de tais serviços pelos Municípios, sem a possibilidade de ingerência de outros entes federativos, consoante os julgados na ADI 2.340/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, na ADI 1.842/RJ Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes e ADI 2077/BA Rel. Min. Alexandre de Moraes.

Quanto à violação ao art. 241 da CR/1988, a ADI nº 6492 alega que a Lei 14.026/2020, em seus arts. 13, 14 e 18, encerra a possibilidade de contratos de programa serem firmados para prestação de serviço de saneamento básico, instituindo o contrato de concessão como único possível, e decorrente de procedimento licitatório. A vedação do uso dos contratos de programa, convênios, termo de parceria limita, dessa forma, a autonomia municipal. Isso, segundo a ADI nº 6583, leva ao esvaziamento do Art. 241/CF e da imposição do modelo único de concessão aos Municípios.

De forma geral, as ADIs, especificamente aquelas de autoria dos partidos políticos, apontam que o novo marco do saneamento conduz a restrições ao exercício do direito fundamental à saúde e ao acesso à água, além de apontar para a violação aos preceitos de redução da pobreza e desigualdades regionais, considerando os riscos de violação ao princípio da universalização dos serviços e à modicidade das tarifas, bem como a inviabilização da atuação das companhias estaduais, o que constrói um cenário bastante negativo para as comunidades mais vulneráveis que podem ter problemas com uma sobretarifação, ou mesmo o não atendimento pelos serviços por fazer parte de áreas que não são lucrativas. Isso se encontra presente principalmente nas primeira e segunda ADI do quadro 1. Dessa forma, não é exagero estabelecer que esse argumento devesse ser apreciado à luz dos direitos humanos já que está diretamente relacionado com a fundamentalidade desses direitos. Sendo assim, as normas constitucionais que estariam sendo violadas seriam o art. 3º, III e IV, o qual estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa (tais como a erradicação da pobreza, a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais), e o art. 170, VII, que é fundamento da ordem econômica em reduzir as desigualdades regionais e sociais.

A ADI nº 6492 levanta a questão da água como direito fundamental, arguindo que, caso não seja garantido o amplo acesso aos serviços pelos usuários em razão dos elevados valores da tarifa (inobservância do princípio da modicidade das tarifas), o Estado não pode delegar a prestação de serviço, sob pena de desvio de finalidade, e num cenário de ampla privatização do sistema, não estaríamos distantes dessa realidade. Já ADI nº 6583 pontua que é através dos contratos de programa que as empresas estaduais podem ofertar tarifas sociais, sendo um mecanismo para facilitar o acesso de pessoas socioeconomicamente vulneráveis a serviços básicos de abastecimento d’água e esgotamento sanitário. Assim, a cobrança é subsidiada pelos demais consumidores e o consumidor de baixa renda paga um valor menor, observando a acessibilidade econômica inerente ao direito humano à água.

Segundo a ADI nº 6492, a nova legislação editada enfraquecerá as empresas estaduais de saneamento, na medida em que extingue o sistema de subsídio cruzado, em que os municípios superavitários compensam os deficitários. Não bastasse o problema do financiamento dos serviços, a ADI nº 6492 alega, ainda, que a Lei 14.026/2020, ao impossibilitar a renovação dos contratos de programa vigentes, retira as condições econômicas de sobrevivência das companhias de saneamento. Outro argumento levantado quanto ao acesso aos serviços é o risco de a legislação criar um monopólio do setor privado nos serviços essenciais de acesso à água e ao esgotamento sanitário – não contribuindo para a universalização do acesso aos serviços.

Nesse contexto, a ADI nº 6492 requer, nos pedidos da inicial, que o art. 22, IV, da Lei nº 14.026/2020 deva receber interpretação conforme a Constituição, para que as tarifas sejam reajustadas de acordo com o salário mínimo, com o intuito de que a universalização do serviço de saneamento básico não repouse apenas na seara retórica, de modo a garantir que os cidadãos não sejam onerados com a intensificação da venda de água. Embora esse seja um argumento frágil, diante da inexistência de dispositivo constitucional que o suporte, mesmo diante da sua razoabilidade.

Essas violações, segundo a ADI nº 6536, encontram-se na possibilidade prevista em lei dos serviços deixarem de ser prestados por companhias estaduais e passarem a ser prestados por delegação ao particular, pois transfere o serviço para o campo das atividades econômicas. A premissa tomada na citada ADI é a de que o objetivo prestacional do saneamento básico não pode ser o lucro dos particulares, mas a satisfação do interesse público. Os diversos incentivos criados pela Lei para que ocorra a delegação dos serviços ao setor privado provavelmente afetará a universalidade da prestação do serviço público, violando a igualdade dos usuários consumidores e a modicidade tarifária, ampliando massivamente a possibilidade de privatização se comparado com a lei n. 11.445/2007. Em síntese, a violação da modicidade da tarifa e a não universalidade do serviço poderão resultar na violação de direitos fundamentais dos usuários.

Também existe a ofensa às normas de finanças públicas, pois a lei gera despesas aos entes federativos sem indicar a fonte de custeio próprio ou estimativa do impacto orçamentário e financeiro. Nesse caso, as normas constitucionais violadas seriam: a 165, § 7º, que delimita o dever da legislação orçamentária de reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional; art. 167, II, que veda a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais; bem como o art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“ADCT”), segundo o qual a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

A ADI nº 6492, por sua vez, alegou que o art. 5º cria onerações vultosas sem as devidas estimativas de impacto fiscal e financeiro, haja vista que amplia as atribuições da ANA, que necessitaria de largo quadro de pessoal, estimado em 239 cargos de Especialista em Recursos Hídricos e Saneamento Básico.

A ADI nº 6583 aduziu ainda o abuso de posição dominante pela União e a coerção dos Municípios, uma vez que entidades reguladoras e fiscalizadoras devem adotar as normas de referência nacionais para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico; caso contrário resta inviável o acesso aos recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal, nos termos do art. 50 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007.

Também é possível enxergar a violação de normas de gestão pública, tais como a legalidade, a regra do concurso público, as normas gerais de licitações e contratos administrativos e a responsabilidade civil do Estado, atribuída exclusivamente ao Município. De acordo com as ADIs nº 6492 e 6536, o novo marco legal do saneamento também violou o art. 37, caput, incisos II e XXI e § 6º, que tratam daqueles princípios e que determina a responsabilidade civil objetiva do Estado e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos pelos danos causados a usuários e terceiros usuários de serviços públicos.

A regra do concurso público foi violada, segundo a ADI nº 6536, pelo desvio de finalidade dos servidores titulares do cargo público de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos na estrutura originária da ANA, pois a lei ordinária não pode subordinar o servidor de cargo efetivo ao exercício de novas atribuições inexistentes no momento de sua investidura, e, atualmente, há vedação legal à realização de concurso público até 31 de dezembro de 2021 (art. 8º, inciso V, Lei Complementar n. 173, de 27 de maio de 2020).

Por fim, segundo a ADI nº 6536, não se mostra razoável a imposição de responsabilidades administrativa, civil e penal exclusivamente aos Municípios – titulares dos serviços públicos – excluindo os Estados e a União, conforme se pretende o art. 8º-B da nova lei do saneamento.

Nesse sentido, as mencionadas ações direta de inconstitucionalidade versam sobre a controvérsia atinente à constitucionalidade do novo marco legal do saneamento básico, questionando diversos dispositivos. Dentre eles, confluem a extrapolação da competência da União, a universalização da prestação do serviço, princípios federativos, a violação à ordem econômica, entre outros. A matéria é dotada de suma relevância e apresenta especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, e ainda de grande importância para o alcance da efetivação do Direito Humano à água e saneamento básico. Assim torna-se de grande interesse seu entendimento, o acompanhamento do trâmite, bem como o devido deslinde das subsequentes decisões que venham a ser tomadas. O julgamento dessas ações, que tramitam apensadas, está marcado para o próximo dia 9 de novembro pelo plenário da corte superior brasileira, o Supremo Tribunal Federal.

Autores:
[1]Ivanice Milagres Presot Paschoalini– Analista de Gestão em Saúde do Centro de Pesquisa René Rachou/FIOCRUZ, mestre em direito, doutoranda em Saúde Coletiva, membro do projeto Privaqua/FioCruz.[2]José Irivaldo Alves O. Silva – Professor da Universidade Federal de Campina Grande, doutor em Ciências Sociais e Direito humanos e desenvolvimento, pós-doutorando no projeto Privaqua, Fiocruz.
[3]Laiana Carla Ferreira – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, UFRJ, membro do Privaqua/FioCruz.