Autor: Bruno Puga
O desafio de garantir água limpa, segura, adequada e suficiente para uma população de 7 bilhões de pessoas predominantemente urbana é (ainda) enorme e cercado de armadilhas. Inúmeras são as formas como as sociedades têm se organizado para tentar equilibrar as múltiplas funções da água e garantir que as prioridades na alocação e uso não deixem ninguém à margem. A literatura sobre a forma como lidamos com tal desafio é extensa, com debates acalorados e muitas vezes focados em aspectos reducionistas. A água é ao mesmo tempo um “insumo econômico, uma referência estética, um símbolo religioso, um serviço público, um bem privado, uma pedra angular e uma necessidade biofísica para humanos e ecossistemas”.
Karen Bakker é professora da Universidade da Columbia Britânica (Canadá) e tem desenvolvido suas pesquisas nos estudos de governança ambiental, com foco principalmente na provisão de água. Em seu livro “Privatizing Water: governance failure and the world’s urban water crisis”, publicado em 2010, busca olhar de que forma governos, empresas e a sociedade têm falhado em resolver a crise na provisão de água para os centros urbanos. Nas últimas três décadas, proponentes da privatização têm prometido que somente com a participação privada pode-se resolver a grave crise da água que temos vivenciado. Considerada por alguns como a “última fronteira do capitalismo”, a privatização de um bem vital enfrenta barreiras técnicas, éticas e políticas, e é um dos melhores exemplos das disputas internas da atual fase do capitalismo.
Estima-se que cerca de 3% da população mundial é abastecida por operadores privados, mas se considerado apenas a população residente nas grandes cidades este número pode chegar a 20%. Obviamente isso demonstra o nível de atratividade que os grandes centros urbanos possuem, tendo em vista seu potencial maior de lucratividade, deixando de lado as áreas rurais, peri-urbanas ou com baixa densidade. Logo, o foco do livro é o abastecimento urbano que é, para a autora, o “principal campo de batalha em torno do qual a privatização do abastecimento de água é travada”.
O debate sobre a privatização dos serviços geralmente divide os defensores em dois tipos clássicos diametralmente opostos. Os defensores da privatização argumentam que a provisão governamental geralmente é caracterizada por problemas (“falhas de estado”) que vão desde baixos investimentos e cobertura à deterioração da infraestrutura. Já os defensores da provisão pública argumentam que as empresas privadas, por serem orientadas pelo lucro, não garantem necessariamente uma melhoria geral da qualidade ambiental e no serviço; pelo contrário, as empresas provavelmente adotarão cortes de custos prejudiciais à saúde, dignidade e bem-estar (“falhas de mercado”).
Bakker vai além da dicotomia simplória entre prestação dos serviços pelo Estado ou por empresas privadas. O livro desnuda a complexidade inerente na prestação desse serviço vital e busca em sua primeira parte um reenquadramento do debate sobre privatização. Ela argumenta que se deve considerar a privatização não só como um debate econômico, mas também como um fenômeno ambiental e socioambiental. Ademais, afirma que, tendo em vista que os dois modos de provisão possuem problemas, deve-se partir de uma análise da privatização que seja capaz de compreender os papéis simultâneos e muitas vezes sobrepostos desempenhados por governos, empresas privadas e atores comunitários. Sendo assim, a autora inicia sua análise a partir do conceito de “falhas de governança”, em adição às tradicionais falhas de mercado e estado. A governança é definida como uma prática de coordenação e tomada de decisão entre diferentes atores, que é invariavelmente moldada pelos processos culturais, políticos e de poder. Tal definição difere da concepção tradicional na gestão da água, que geralmente a encaixa como um processo de tomada de decisão estritamente técnico.
Para Bakker, analisar os processos de privatização a partir do conceito de “falha de governança” é útil para demonstrar como as instituições responsáveis pela provisão e gestão da água por vezes não levam em consideração as necessidades de todos os cidadãos, principalmente os menos favorecidos. Algumas dessas estruturas de tomada de decisão podem reproduzir preconceitos sistemáticos contra esses grupos e, portanto, podem afetar o resultado de suas ações, reforçando desigualdades e práticas insustentáveis.
Um dos argumentos mais interessantes da autora é que tanto os modelos de provisão via governo quando empresa privada compartilham uma similaridade importante, que é uma visão modernista e antropocêntrica da água. Essa visão de mundo, definida como o paradigma hidráulico, entende a água como um produto que pode ser transportado, canalizado e instrumentalizado conforme as demandas humanas. Para isso, complexas infraestruturas desenvolvidas pela expertise técnica (geralmente dominada por engenheiros homens) moldam uma relação com a água de forma atomizada entre os indivíduos e as redes de infraestrutura. Este modelo de provisão da água, entretanto, geralmente negligencia as complexas funções ecológicas da água, seus territórios e sua dependência dos processos naturais. Ademais, tal visão desdenha, segundo a autora, de práticas comunitárias, negando alguns conhecimentos tradicionais e locais, bem como valores espirituais dessas práticas.
De forma geral, há três eixos principais que norteiam o livro. O primeiro é de tentar entender os motivos que elevaram a privatização como solução mais defendida para resolver os problemas na gestão da provisão de água, demonstrando os principais argumentos dos seus defensores e críticos. Um segundo questionamento é avaliar se tais processos de privatização conseguiram (ou vão conseguir) cumprir com sua promessa e expectativas, principalmente para a população pobre e urbana nos países em desenvolvimento. Por último, o livro tenta identificar alternativas à panaceia da privatização. Se a privatização não é capaz de resolver os problemas na gestão da água, como superar este debate? Há soluções além da dicotomia provisão pública e mercado? Uma das constatações é de que considerando que muitos governos têm falhado sistematicamente em fornecer abastecimento de água de forma adequada, as empresas privadas por sua vez não conseguiram melhorar a situação de forma contundente. Muitas das falhas que são observadas na provisão de água são comuns aos dois modelos (privado e público) e, como demonstrado por Bakker, muitas das empresas privadas partiram em retirada de países pobres. Isto tem causado um florescimento na discussão sobre os modos alternativos de provisão comunitários nos países do sul global (conceito que a autora considera impreciso), como por exemplo demonstrado na experiência de Cochabamba (Bolívia).
Os dez anos que separam este artigo da publicação do livro não tornam o livro obsoleto, pelo contrário. As novas batalhas travadas ao redor do globo e no Brasil, a partir da promulgação do novo marco do saneamento no Brasil, demonstram isso. Apesar de a leitura envolver conceitos por vezes complexos e beber de fontes teóricas variadas, é escrito de uma forma muito didática e fluida, o que auxilia o leitor não acadêmico a ter contato com um dos melhores livros sobre o tema. Infelizmente ainda não há uma versão em português, o que facilitaria a difusão de suas ideias para um debate mais qualificado aqui no Brasil.