Reflexões sobre saneamento rural, comunidades tradicionais e as novas diretrizes do saneamento com vistas à privatização

Autora: Estela Macedo Alves*

O saneamento rural no Brasil, historicamente, representa grande passivo e déficit de atendimento público. Tecnicamente, as soluções de abastecimento de água e de redes de esgotos utilizadas em áreas urbanas, de fato, não resolvem os problemas nas zonas rurais e nas comunidades tradicionais. No entanto, a visibilidade de situações em que há violação dos direitos humanos à água e ao saneamento trazem à tona a necessidade de que as comunidades rurais e tradicionais brasileiras sejam beneficiadas, assim como a população urbana, de forma digna, com água potável e soluções de afastamento e tratamento de esgotos, inclusive por questões de saúde pública, alcançando os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento (DHAS).

Estudos de caso desenvolvidos no âmbito dos projetos Privaqua e Comunidades quilombolas e Covid-19: desenvolvimento de tecnologias sociais para a promoção de saúde no Médio Jequitinhonha, Minas Gerais, da Fiocruz-MG, nos Quilombos Córrego do Rocha e Córrego Narciso, no nordeste de Minas Gerais, apontaram para situações graves de violação dos DHAS, que ficaram ainda mais evidentes durante a pandemia de Covid-19.

O diagnóstico preliminar realizado nos dois quilombos chamou a atenção para a necessidade de maior compreensão do arcabouço institucional e dos atores sociais e institucionais responsáveis pelas políticas públicas de saneamento nas comunidades quilombolas território, em meio à discussão da universalização do saneamento trazida pela Lei Federal 14.026 de 2020, que revisa do Marco Legal do Saneamento. Essa Lei amplia as possibilidades de que o saneamento seja privatizado, com o argumento da necessidade de atração de investimentos privados. No entanto, não contempla em seu texto os direitos das populações quilombolas.

Assim, este artigo discute se, de alguma forma, as zonas rurais e comunidades tradicionais serão beneficiadas, por meio das novas diretrizes do saneamento, principalmente da privatização dos serviços.

Estudo de caso: Acesso ao saneamento nos quilombos

Os quilombos estudados situam-se nas zonas rurais dos municípios de Araçuaí e de Chapada do Norte, no nordeste de Minas Gerais, na região do Médio Jequitinhonha.

O Quilombo Córrego do Narciso, situado em Araçuaí, abriga 72 famílias. O município como um todo tem população total de 36.715 habitantes, sendo que 12.578 (34,9%) estão na zona rural (IBGE CENSO, 2010). São 3.362 domicílios rurais, dos quais apenas 4,6% têm saneamento adequado (IBGE CENSO, 2010). O índice de atendimento total de água, incluindo população urbana e rural, é de 69,69% (SNIS, 2019).

O Quilombo Córrego do Rocha, situado em Chapada do Norte, abriga 27 famílias. O município como um todo tem população total de 15.334 habitantes, sendo que 9.157 (63%) estão na zona rural (IBGE CENSO, 2010). Apenas 19,6% do esgotamento sanitário do município é considerado adequado (IBGE CENSO, 2010). O índice de atendimento total de água, incluindo população urbana e rural, é de 83,72% (SNIS, 2019).

Com base em estudos qualitativos, realizado em conjunto com os moradores dos dois quilombos, foi possível vislumbrar um retrato da situação atual, que revela violações dos direitos humanos à água potável e ao esgotamento sanitário. A forma mais frequente de abastecimento de água tem sido, nos últimos anos, o fornecimento de caminhões pipa com água comprada da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA) pela prefeitura, sem custo às famílias. No entanto, esta água não é entregue com frequência, necessita de solicitação e agendamento e, muitas vezes, não consegue chegar a todas as casas. A quantidade de água distribuída também não atende às necessidades das famílias, tornando-se necessário o racionamento permanente nas residências.

Diretrizes nacionais do saneamento rural 

A Lei Federal 14.026 de 2020, atualmente em vigor, prevê que para o abastecimento de água devem ser previstos, entre outros fatores, regularidade, eficiência, segurança, adoção de técnicas peculiares a cada região, com vistas à universalização. Porém, o termo rural é mencionado na Lei apenas quatro vezes e o termo quilombo, apenas uma vez. Pode-se inferir que esses territórios não são foco das diretrizes da nova lei federal e que a previsão da universalização não os inclui diretamente. Comtemplar saneamento em áreas não urbanas dependerá de leis mais específicas, nos níveis municipais e estaduais.

Por outro lado, o marco legal do saneamento anterior, Lei Federal 11.445 de 2007, previu a elaboração do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que foi desenvolvido num contexto político de intensa participação social e indicou a formulação de um programa nacional de saneamento rural. Desta forma, o saneamento em zonas rurais e comunidades tradicionais tem como referência, no nível nacional, o Programa Saneamento Brasil Rural (PSBR) (Funasa, 2019; DOU, 2019), com base em trabalho elaborado entre os anos de 2015 e 2019, sob a coordenação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (Funasa, 2021).

O Ministério da Saúde, por meio da Funasa, é o principal órgão responsável pela implementação do PSBR. Mas essa implementação deverá contar com a articulação de instituições dos governos estaduais e municipais e da sociedade civil organizada (Funasa, 2019).

O Programa tem como objetivo articular e ampliar a universalização do acesso ao saneamento básico em áreas rurais e comunidades tradicionais, inclusive populações quilombolas. As especificidades de cada comunidade servirão de base para a escolha da solução mais adequada, de acordo com a Funasa (2019), cabendo a esse órgão coordenar e implementar o Programa e criar colegiado para sua execução. No entanto, dependerá de previsão orçamentária na Lei de Diretrizes Orçamentárias, tendo sido anunciado investimentos de R$218,94 bilhões para os próximos 20 anos.

O apoio técnico e financeiro da Funasa é acessado por meio de convênios celebrados com municípios e estados. Entre as ações financiáveis estão ampliação ou melhoria de sistemas públicos de água e esgoto; melhorias sanitárias domiciliares ou coletivas de pequeno porte implantação de sistemas de captação e armazenamento de água das chuvas, como por exemplo, cisternas (Funasa, 2021-c). Os recursos vêm do Orçamento Geral da União, através de editais que lecionam projetos propostos pelos municípios ou por emendas parlamentares.

Sendo assim, a universalização do saneamento dos territórios quilombolas, depende essencialmente de interesse político e da capacidade técnica das prefeituras e nada tem em comum com a universalização proposta na revisão do Marco Legal do Saneamento, Lei 14.026, com base no incentivo à privatização dos serviços.

Unidades Regionais de Saneamento em Minas Gerais

Unidades regionais de saneamento fazem parte de estratégia prevista na Lei 14.026 de 2020, para posteriormente os serviços de água e esgoto serem ofertados a empresas públicas ou privadas, através de licitações.

O governo do Estado de Minas Gerais propôs a definição de unidades regionais, a serem constituídos pelos 853 municípios do estado. São propostas 22 unidades regionais de água e esgotos, com população de cerca de 300 mil habitantes, tendo como ponto de partida as Unidades de Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos (UPGRH) do estado, já existentes.

Araçuaí e Chapada do Norte estão inseridas na unidade identificada como URAE 19, que faz parte da região hidrográfica dos afluentes dos Rios Mucuri, São Mateus, Jequitinhonha e Pardo.

A constituição de regiões para serviços de saneamento, como exigida pela Lei 14.026, requer a definição também das estruturas de governança que irão gerir as estruturas regionais, podendo significar a retirada da autonomia municipal sobre o saneamento, ao menos nas áreas urbanas. No entanto, observou-se que, em nenhum dos documentos analisados até o momento, as áreas rurais e comunidades tradicionais seriam comtempladas com a contratação de empresas para as unidades regionais, mas apenas as áreas urbanas.

Sendo assim, continuaria a cargo das administrações municipais a solução dos problemas de acesso à água e esgoto nesses territórios.

Considerações Finais

Questionamos por que a Lei Federal 14.026, divulgada como solução para o déficit de saneamento no país e alcance da universalização dos serviços, não contempla, em si, encaminhamento para esses serviços nas comunidades rurais e tradicionais.

Pode-se compreender que há uma racionalidade falaciosa de que o incentivo à privatização dos serviços de saneamento levará à sua universalização. Observa-se, porém, que não está previsto que a privatização dos serviços de saneamento, incentivadas pelo marco legal do saneamento revisado, vá solucionar a falta de acesso à água nas comunidades tradicionais. Essas populações estarão sujeitas a um longo caminho para serem contempladas com os direitos humanos à água e ao saneamento, o que demanda estruturação técnica das prefeituras e articulações políticas capazes de reverter recursos para os territórios quilombolas, em particular.

É preciso destacar que a privatização do saneamento não é a solução dos problemas de saneamento das áreas mais deficitárias e vulneráveis, principalmente em territórios rurais e de comunidades quilombolas. É necessário esforço de todos os níveis do poder público, para que a universalização do saneamento não deixe ninguém para trás.

Referências
Agência Minas. Minas lança consulta pública sobre unidades regionais de saneamento. Belo Horizonte, 05/05/2021. <http://agenciaminas.mg.gov.br/noticia/minas-lanca-consulta-publica-sobre-unidades-regionais-de-saneamento> Acesso em 05/10/21

Diário Oficial da União. Seção 1. Portaria N.3.174, de 2 de dezembro de 2019. Brasília, 04/12/2019.

Fundação Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR). Brasília 2019. <http://www.funasa.gov.br/documents/20182/38564/MNL_PNSR_2019.pdf> Acesso em 05/10/21

Fundação Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Programa Saneamento Brasil Rural. Brasília, 13/07/2021. <http://www.funasa.gov.br/web/guest/programa-saneamento-brasil-rural> Acesso em 05/10/21

Fundação Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Sistemas de abastecimento de água. Brasília, 12/07/2021 (2021-b). <http://www.funasa.gov.br/web/guest/sistemas-de-abastecimento-de-agua> Acesso em 05/10/21

Fundação Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Saneamento em áreas rurais e comunidades tradicionais. Brasília, 06/07/2021 (2021-c). <http://www.funasa.gov.br/web/guest/saneamento-em-areas-rurais-e-comunidades-tradicionais > Acesso em 05/10/21

IBGE CENSO, 2010. https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html

IBGE Cidades (2021). Araçuaí. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/aracuai/panorama

SNIS. Painel de Indicadores 2019. Brasília, 2019. http://appsnis.mdr.gov.br/indicadores/web/ Acesso em 06.10.21.

*Autora:
– Estela Macedo Alves – Pós-doutoranda no Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), Pesquisadora IEA USP; Centro de Pesquisa René Rachou – Fiocruz e do Laboratório de Estudos de Governança Ambiental e Desigualdades Socioambientais (LEGADO). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (PROCAM-IEE-USP) (2014-2018). Pesquisadora do grupo de pesquisa de Governança Ambiental (GOVAMB) entre 2014 e 2018. Mestra na área de Planejamento Urbano e Regional (2006-2009) e Graduada em Arquitetura e Urbanismo (1997-2003) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU USP).